segunda-feira, 9 de novembro de 2020


No próximo dia 27, ocorrerá, mais uma vez, a Black Friday, que acontece no Brasil desde o ano de 2.010.

Não perca a Black Friday da Degustadora de Histórias!

Você conhece a verdadeira história de como surgiu a Black Friday?

Todo ano, nesse período, são divulgadas fake News, por meio do aplicativo Whats App e das redes sociais, afirmando que a Black Friday teria surgido em 1.904, em referência ao dia em que os senhores vendiam os escravos em liquidação. Essa história é completamente falsa, e foi compartilhada por milhares de pessoas na data de ontem, e levou um grande número de pessoas a acreditar que se tratava de uma história verdadeira.

A real origem do termo Black Friday não é um consenso, mas há algumas hipóteses, que não incluem essa fake news dos escravos. Uma das hipóteses seria que a expressão “Sexta-feira Negra” teria nascido no final do século XIX, após duas instituições financeiras terem quebrado no mesmo dia, em plena corrida do ouro, numa Sexta-feira. Há uma outra hipótese (mais aceita), defendida pelo linguista Bem Zimmer, de que o termo foi criado por policiais da Filadélfia, na década de 1960, para se referir ao dia após o feriado do Dia de Ação de Graças, em que o trânsito se tornava um caos. Segundo Zimmer, o fluxo de veículos, por conta da folga prolongada, aumentava demais, surgindo então o termo “Sexta-feira negra”. Como o trânsito ficava parado, os lojistas aproveitavam para realizar liquidações e atrair as pessoas que passavam pelo local. Assim, essa referência ao trânsito se deslocou para uma referência ao local das ofertas, se tornando uma tradição.

Não repasse fake news! Confira sempre a veracidade de uma história! E participe de nossa Black Friday!!! Esperamos vocês.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

 

De maneira diferente da de Edgar Allan Poe, H.P. Lovecraft também entra na alma e no estado psíquico do leitor. Considerado um dos reis do terror, Lovecraft sabe como fazer o leitor questionar a realidade do seu universo literário.

Com contos pertencentes ao gênero fantástico, Lovecraft faz de “O chamado de Cthuluhu” uma de suas obras-primas. No livro que traz este conto como título e ainda entrega doses aterrorizantes em alguns outros, o leitor pode experimentar um frio na espinha e aquele pequeno medo que nos acompanha quando lemos algo que nos leva ao desconhecido.

Por descrever apenas descobertas que não são palpáveis ou concretas, Lovecraft faz o leitor se cobrir à noite e não abrir os olhos por medo de encarar alguns dos monstros ou ideias que estavam nos contos. O desconhecido sempre assusta, mas Lovecraft o faz imensurável e sempre presente.

Seja por ousadia ou ignorância, as personagens de Lovecraft sempre se deparam com o inexplicável, e o narrador deixa o leitor em uma angústia que o persegue até depois da leitura. Nos sete contos deste livro, o leitor acompanha as personagens, suas dúvidas e suas reações diante do terror cósmico que lhes é apresentado.

Alguns dos contos – os mais curtos – parecem ser mais assustadores. Talvez isso ocorra devido à intensidade que o narrador lovecraftiano deposita em suas palavras. Entretanto, é o mais longo e mais clássico deles, que intitula o livro, que foi a sua porta de entrada para o mundo onde reinam nomes como Stephen King e Edgar Allan Poe.

Assim como sua inspiração foi Poe, Lovecraft tornou-se inspiração para vários outros autores de livros de terror e diretores de filmes do mesmo gênero: sua atmosfera claustrofóbica e cosmicamente sombria deixou como herança o medo que não sabemos de onde vem e que, quando percebemos, invade nossos corpos e tira nosso sono. Lovecraft não é para muitos, mas os que o leem com mente aberta e luzes acesas, geralmente, o amam.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

 

Renegado pelo pai adotivo e alcoólatra inveterado, Edgar Allan Poe possivelmente também sofria de doenças mentais que, na época, não foram tratadas e nem sequer descobertas. Sua vida, permeada pela tragédia e pelos finais infelizes, é objeto de curiosidade e geralmente ligada à sua obra por vários estudiosos. A maldade encontrada em sua obra é atribuída, por muitos, ao seu frágil estado mental, que se deteriorou muito rapidamente devido à bebida. Edgar Allan Poe é o epíteto de uma alma atormentada e do poder literário que ela pode ter.

Em meio a tantas histórias de horror e de terror, o que mais assombra nos contos de Poe é o fato de todos mostrarem que a maldade humana não é apenas possível, mas que, em algum momento, pode se transformar em algo natural também. Seus mais famosos contos trazem personagens que foram emparedados vivos, ou que foram mortos devido a um olho com catarata, ou que sofreram a vingança de um suposto amigo, ou que foram enterrados vivos, ou que se tiveram seus dentes arrancados a marteladas, ou que talvez tenham cometido incesto. As mulheres de seus contos nunca são saudáveis e sempre levam o homem a algum tipo de loucura ou crime, cometido no calor de uma situação ou depois de muito tempo sendo assombrados por ideias oníricas.

Seus poemas também trazem o tormento da alma e não permitem que o leitor os termine sem aquela sensação de ter o coração afundando ou de sentir arrepios na espinha. “O corvo” transformou-se em uma ode à angústia e ao medo e, juntamente com “Annabel Lee”, traz ao leitor um outro lado de Poe, mas que não é menos aterrorizante que o Poe das narrativas. Os contos “O gato preto” e “O coração denunciador” – também encontrado como “O coração delator” – sussurram ao leitor a dor sentida por um autor que jamais foi compreendido e que, por isso, tornou-se um gênio da escrita e da crueldade.

Aos 40 anos, Poe deixou o mundo e um legado: histórias que jamais seriam esquecidas por sua perversidade e pelo efeito duradouro que elas causam em seus leitores. Ao partir, Poe levou com ele toda a dor que ele carregou durante a sua vida, mas não sem antes macular o mundo com a sua ideia de que o ser humano não tem salvação e que o amor, quando existe, faz com que adoeçamos. Se Poe o tivesse encontrado, hoje, talvez, não teríamos as mais bem escritas histórias de terror psicológico do século XIX. Entretanto, isso é apenas uma especulação, pois Edgar Allan Poe já está no inconsciente coletivo, com todas as nuances da maldade humana, que variam de uma machadada na cabeça a uma na alma, sendo igualmente destruidoras. Jamais saberemos o que teria sido dele se ele tivesse sido realmente amado...

 

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

 

Escrito por Lucy Montgomery, em 1908, que baseou suas linhas vagamente na história real de um casal de irmãos que queria adotar um menino, mas que, por engano, recebeu uma menina, “Anne de Green Gables”, até hoje, encanta leitores de todas as idades. Tido como leitura infantojuvenil escolar obrigatória no Canadá e em várias partes do mundo, o livro apenas ganhou notoriedade no Brasil com a sua adaptação para a série de três temporadas da Netflix, que levou o título de “Anne with an E”, que é como a órfã se apresenta a todos. O motivo de o título ser esse é que histórias de crianças órfãs, clichês, no Canadá, são chamadas de  “Histórias de Ann”. Essa Anne, no entanto, é completamente diferente, e suas aventuras e histórias são únicas. Seu nome não poderia ser diferente e teve a letra acrescentada.

Anne Shirley é adotada por Marilia e Matthew Cuthbert por engano, pois ambos, solteiros e idosos, gostariam de um menino para ajudá-los a cuidar das terras que possuem. Matthew se encanta por Anne desde o início apesar de sua personalidade e da de Anne serem opostas. Marilia, a princípio arredia à ideia de manter uma menina tão falante e tão vivaz quanto Anne, acaba cedendo aos apelos do irmão e não se arrepende: é Anne que tira o morno de sua vida e lhe traz alegrias e uma nova visão sobre a vida. Aliás, é Anne que devolve a vida aos dois, já que eles apenas sobreviviam, e não viviam, antes de sua chegada.

Anne, que não conhecia o amor incondicional – tampouco o amor em si – recebe dos irmãos o mais puro sentimento do mundo e o retribui de todas as formas. Por ser uma menina de alma inquieta, porém angelical, Anne acaba por se encontrar como pessoa na fictícia Avonlea, onde faz amigos com facilidade e dá vazão a toda sua generosidade, imaginação e potencial de inteligência reflexiva. Anne pode ter sido órfã até que seu caminho cruzasse com o de Matthew e de Marilia, mas o contrário também é verdadeiro. São os dois que são adotados pelo amor, pela alegria e pela devoção de Anne.

De suas muitas aventuras ainda pueris e inconsequentes, o que se tira de mensagem é a leveza que uma alma leve e antiga carrega consigo. A de Anne é ambas as coisas e se torna contagiante. Sua fala rápida, divertida, dramática e única tornam-se uma constante na vida de seus vizinhos, de seus amigos e daqueles que ela tem como pais e como exemplo. Assim como acontece na vida real, Anne, com todo o seu coração, também se transforma em exemplo com suas atitudes originais e críticas, porém repletas de pureza e de generosidade, e, em pouco tempo, cativa o leitor com um perfume que tem a fragrância da bondade, do altruísmo e da gratidão.  

“Anne de Green Gables” é o primeiro livro da série “Anne” e ele deixa o leitor com vontade de ter dado as mãos à sua protagonista e se aventurado pelos campos e pela escola de Avonlea. O leitor sorri em cada linha e, se porventura, seu coração estiver um pouco pesado devido às agruras do dia a dia, ele sentirá como se um anjo fosse substituindo esse pesar por uma esperança quentinha e gostosa, encontrada em tardes ensolaradas de primavera. Esse é o efeito Anne em todos aqueles que querem o Bem sempre ao seu lado. 

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

 

A eterna menininha de 6 anos perdeu seu pai hoje. Mafalda, ícone das reflexões sobre um mundo melhor, que Quino não conseguiu ver, foi criada em 1964 e teve vida até 1973.

Em apenas 9 anos de existência, Mafalda se imortalizou e se tornou inspiração para muitos outros cartunistas e gerações de pessoas que nem sequer haviam nascido quando ela deixou de existir.

O argentino Quino nunca deixou de lutar por um mundo que ele sonhava para Mafalda e para todos nós. O AVC o tirou do nosso mundo, mas nosso mundo jamais deixará que seu legado seja esquecido. Quino vive em Mafalda, e Mafalda vive em nós.

Como Mafalda questionaria "O que é a morte se não uma continuação daquilo que chamamos de vida? E, afinal, o que chamamos de vida?". Sendo assim, parta em paz, Quino. Sua vida foi uma missão cumprida. A luta continuará. Não se preocupe!!!!!! 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

 

Valter Hugo Mãe, autor nacionalizado português, que completará 49 anos nesta sexta-feira, dia 25 de setembro, tem a escrita de um pássaro que conhece o mundo. Cada um de seus romances tem como pano de fundo um país diferente e um tipo de amor que não se prende apenas ao mundo que conhecemos como ele é. Seus romances nos tocam e se deixam ficar, como cicatrizes em nossas almas, depois de sua leitura. Dos vários que ele já escreveu, “A desumanização” deixa uma marca que levamos para sempre conosco.

Tão dolorosa quanto triste é a história de Halla, criança-mulher de 12 anos, que perde a irmã gêmea, Sigridur, que morreu e foi plantada “para nascer árvore”. Passando a ser invisível para a mãe e para a aldeia finlandesa onde mora, Halla sofre a dor do luto sozinha, apenas com os poemas que o pai escreve para ela e as lembranças da irmã. O que poderia ser uma vida vivida a quatro mãos, duas almas e duas risadas passa a ser meia vida, com andanças por campos e pensamentos no que poderia ter sido, carregando o fardo da culpa de ser a irmã sobrevivente.  

Ao longo da história, enxergamos a aldeia e seus moradores com os olhos de Halla-Sigridur. Halla ainda não consegue ser apenas ela já que, durante toda a sua curta existência, ela era Sigridur e Sigridur era ela. Como gêmeas, uma não existia sem outra, e Halla, repentinamente, deve aprender a existir apesar de suas dores e de sua falta de vontade. Halla, de ser completo que era, passa, então, a se procurar na sua incompletude, encontrando razões para viver onde Sigridur não as via. Essa é a maneira que Halla encontra para existir: abandonando o que ela e a irmã pensavam e faziam juntas. Já que uma se foi, a vida passa a ser o que o passado não era, e Halla encontra formas de se punir para poder sobreviver ao luto e ao crime de não ter partido no lugar da irmã, como a mãe lhe diz que deveria ter acontecido.

Para que Halla deixe de ser invisível a ela mesma, ela tem que deixar de ser a irmã de Sigridur e, como única forma de passar a existir, ela decide permitir que a pessoa que a irmã mais abominava se aproxime dela. Einar, um homem bem mais velho que Halla e com um sutil atraso mental, objeto de risos jocosos e comentários maldosos das irmãs, torna-se aliado da irmã que ainda vive e, juntos, eles lidam com suas próprias dores. Duas almas solitárias e culpadas encontram o alívio uma na outra, de maneira espiritual e carnal.

A história de Halla choca o leitor mais atento, que acompanha o desejo que a pequena mulher de 12 anos tem de sair do estado de não existência enquanto ela deve continuar existindo apesar dela mesma. Mesmo que as paisagens da Finlândia amenizem a dor das personagens e que as palavras de Valter Hugo Mãe, carregadas de poesia, ofereçam ao leitor uma profunda reflexão sobre o medo que mora em todos nós, Halla e sua consternação nos perseguem como nossa própria sombra quando queremos nos livrar dela. A união dos sexos de Halla e Einar, poeticamente, apunhala o leitor e não o deixa procurar por socorro.

Ao descobrir que a nossa humanidade não começa em nós, mas naquele que nos rodeiam, Halla tem que conviver com o peso de não ser e de não ter Sigridur, sua metade. Halla tem que conviver com olhares acusadores e hostis. Ao tentar dividir com o leitor a sua dor, ela nos ensina o que as palavras são as responsáveis por nossas lembranças e por nossas escolhas e que um mundo sem elas não é um lugar para se existir. Halla procura por esse mundo sem palavras e sem lembranças e sem dor, mas tudo que ela encontra é o silêncio gritando de volta para ela, relembrando-a que não há mais volta. Ela tem que ser o que restou dela e que se reerguer de seus farrapos de alma, pois “a solidão é uma ficção de nossas cabeças” e “a beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro”. Halla, assim como nós, não tem escolha. Não podemos nos deixar sós e nem em silêncio. Ele grita e não nos permite esquecer o que somos – seja lá o que isso significa.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020


Esta não é uma história de amor, tampouco é uma história de ódio. Esta é uma história de como o ser humano é complexo e egocêntrico, mesmo quando ele se depara com opções que permitam que ele escolha ser melhor ou simplesmente olhar para fora de si mesmo, a fim de enxergar o outro e de o acolher em sua vida como ele é. Esta é uma história cuja verdade jamais saberemos, pois ela é o que menos importa. Esta é uma das obras-primas do mestre da narração, um homem negro, pobre e epilético, que foi rechaçado por seus colegas contemporâneos de escrita. Esta é a história que Machado de Assis escreveu para mostrar ao mundo o poder das palavras e do olhar. Esta é “Dom Casmurro”.

Há mais de cem anos, Machado de Assis não imaginava o poder que sua Capitu e que seu Bentinho exerceriam sobre milhares e milhares de leitores. Machado de Assis partiu deste mundo sem saber que a pergunta “Traiu ou não traiu?” seria um divisor de águas. Por ser um gênio da literatura e um leitor de almas, Machado de Assis escreveu aquilo que se transformou em infindáveis discussões, até mesmo nos lugares mais improváveis, como bares e esquinas. Capitu, a dona do olhar de cigana dissimulada, ainda povoa mentes curiosas e divide o palco anímico com o eterno menino Bento, dono de pensamentos sórdidos, mas de palavras sábias.

A grande obra machadiana faz com que o leitor encontre motivos dentro dela mesma para  uma verdade em que ele já acredita ou, ainda, preza ou despreza. Nenhuma personagem machadiana nesse livro é isenta de culpa – seja ela do que for – ou de maldades, mesmo que disfarçada de promessas feitas em nascimentos ou recusa de amor ou pequenas mentiras. O leitor, ao perceber isso, costura sua tese como uma colcha de retalhos e prova sua teoria com trechos daqui e de acolá. “Dom Casmurro” é uma porta aberta para todos nós e para nossas crenças mais profundas, com a aparência de uma simples opinião.

O “triângulo amoroso” mais famoso do Brasil apenas guia o leitor pelo caminho da imaginação porque o narrador, o próprio Bentinho, faz de suas palavras grandes aliadas. Ao dedicar capítulos curtos, porém completos, a um diálogo com os leitores, principalmente as femininas, Bento mostra sua gentileza e sua fragilidade, evidenciando seu lado vulnerável, que o mundo destruiu friamente com uma arma chamada mulher. Capitu, aos olhos de Bentinho, torna-se, portanto, alguém-objeto, forte, dissimulada e inteligente, capaz de tudo para satisfazer seus desejos, considerando-se dona de suas vontades, não olhando para fora si e machucando aqueles que cruzam seu caminho. Escobar é visto como o efeito colateral de uma amizade e de uma suposta paixão avassaladora, que até depois de sua morte assombra o amigo, com um fruto de nome Ezequiel.

“Dom Casmurro” parece ser a história de um amor que não deu certo, que foi corrompido por uma traição e alimentado por um ciúme ironicamente racional. Na verdade, esse é apenas o pano de fundo para que o leitor adentre sua própria alma, sem se sentir coagido ou amedrontado. A (suposta) traição nunca foi o cerne real da história. Ao fazer suas escolhas diante do enredo machadiano, o leitor tem que lidar com seus medos, suas inseguranças, suas crenças e sua percepção do mundo e das pessoas que o cercam. O leitor se encontra nas páginas extremante cuidadosas dessa obra. “Dom Casmurro” oferece ao leitor uma passagem de ida ao descobrimento de suas forças motrizes e de seus amortecimentos, de maneira implacável e única.  Há apenas uma sequela dessa leitura: enquanto o caminho para ir a esse encontro é percorrido ladeira abaixo em uma manhã fresquinha, a volta ocorre no fim de um dia de caminhada árdua, embaixo de um sol escaldante, sem água e sem uma sombra sequer. Quem lê “Dom Casmurro” nunca mais é aquele que não o havia lido...

 

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segunda-feira, 24 de agosto de 2020

 

Bonsai & A vida privada das árvores.

A injustiça literária que ocorre com Alejandro Zambra no Brasil não é compreensível. O autor usa uma linguagem clara e explora fatos cotidianos em suas obras, que, teoricamente, são acessíveis a todo tipo de público. O que o diferencia é o olhar e a maneira de contar uma história. Em seu “Formas de voltar para casa” (que já teve uma resenha publicada aqui), a sensibilidade e a emoção arrebatam o leitor desde o início. Isso não é diferente em “Bonsai & A vida privada das árvores”.

Um livro cujo título é tão chamativo pode assustar o leitor comum. Afinal, o que se tem para falar sobre um bonsai ou sobre árvores? Elas realmente têm uma vida privada? O que Zambra faz é mágico, pois ele transporta seu leitor a duas novelas extremamente possíveis e plausíveis. Ele oferece ao leitor a passagem para a mente de suas personagens, e o leitor, por também saber que a mente humana funciona daquela maneira, permite se envolver com as situações que lhe são apresentadas.

A primeira novela do livro, “Bonsai”, informa o leitor, no primeiro parágrafo, o que acontecerá no fim da história, mas a inteligência e a perspicácia de Zambra dominam aquele que se abriu a ele, de tal forma, que, a partir do segundo capítulo, há o total esquecimento de que o final já foi revelado. Com sua escrita e seus imbricamentos, Zambra abre as portas para a vida de dois adolescentes que se conhecem e que se irritam mutuamente, mas que mantêm um relacionamento sem muita seriedade. Em algum momento, há uma separação e, depois, como na vida real, os dois se reencontram em situações adversas e retomam o relacionamento, para haver uma nova separação. Essa história, que é tão banal, abraça o leitor em todos os momentos, porém, na cena final, o leitor sente vontade de abraçar Julio, pois todos sofremos com ele e com o impacto que sua solidão causa.

Em “A vida privada das árvores”, Zambra cria tantas expectativas no leitor que, se ele estiver sentado, ele provavelmente chegará à ponta da cadeira, aguardando o que vai acontecer. Julián é o que somos quando criamos diálogos e histórias que nos assombram em momentos de ansiedade e de tensão. Talvez elas jamais ocorram, mas a sua existência, em nossa mente, as fazem reais enquanto duram, e os seus resultados imaginários nos consomem como se fossem verdadeiros. Ao leitor, cabe a árdua tarefa de torcer com Julián para que a mãe da criança que ele ama, como se fosse sua própria filha, volte para casa, volte para os dois. O desespero de Julián se transforma em nosso, e o amor que ele sente pela criança nos invade da mesma forma.

No prefácio do livro, Zambra contempla o que o teórico Walter Benjamin afirma sobre a arte de contar histórias: ela é a arte de saber continuá-las. Zambra hipnotiza seu leitor ao continuar o que ele inicia e ao dar a oportunidade de o leitor também fazer isso assim que elas acabam. Com Zambra, andar de táxi, sem rumo, após uma notícia de morte e ajeitar a jaqueta de uma criança enquanto chove deixam de ser atos comuns e passam a ser nossos companheiros assim que fechamos o livro. Suas duas novelas nos acompanham por um bom tempo, e isso se deve ao poder de sua narrativa, ao poder dos títulos que elas carregam e, acima de tudo, ao do questionamento que ele faz em cada linha: “afinal, o que é viver?”

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Quando Ray Bradbury nos presenteou com seu atualíssimo Faherenheit 451, o mundo havia presenciado a queima de livros por oficiais nazistas e por parte da população. Em tempos de guerra, o conhecimento se torna uma arma, e Bradbury, sabendo disso, não se negou a mencionar esse fato em uma das mais emblemáticas frases de sua obra: “Um livro é uma arma carregada na casa vizinha. [...] Quem sabe quem poderia ser alvo de um homem lido?” O homem lido é justamente o que falta à sociedade distópica do universo de Faherenheit 451. O título da obra é a exata temperatura da queima do papel, mas engana-se aquele que acha que queimar livros é apenas atear fogo neles. Bradbury deixa claro o efeito catastrófico de uma sociedade sem conhecimento, sem reflexões e sem literatura.

Guy Montag, o bombeiro que não apaga fogos, mas que os inicia, descobre que aqueles objetos que ele tem que incendiar são poderosos. Sua descoberta não é imediata e, assim como toda caminhada, inicia com passos tímidos e duvidosos. Quando sua esposa tenta o suicídio, ele estranha o fato de não ser um médico a atendê-la. Os enfermeiros que a salvam explicam que tantas pessoas tomam as pílulas que ela tomou, que não há mais médicos disponíveis para todos. O susto permite que ele preste mais atenção àquilo que acontece ao seu redor, e suas reflexões são alimentadas por Clarisse, uma menina que tira todas as suas certezas e as substitui por dúvidas. As dúvidas vão se transformando em novas certezas e são laureadas pelo suicídio de uma mulher que se recusa a ter seus livros assassinados pelos bombeiros. Dolorosamente, ela coloca fogo em seu corpo e nos livros, para que eles possam morrer juntos.

Se uma mulher é capaz de morrer por eles, o que eles escondem afinal? O novo questionamento de Montag é seguido pelo roubo de uma Bíblia na casa da mulher, e seu primeiro ato rebelde apenas antecede os vários outros roubos que viriam a acontecer. Ironicamente, cada roubo é uma parte da restauração da consciência de Montag, que não consegue mais conviver com a mulher, depois das perguntas de Clarisse, e percebe quão fútil ela pode ser. Os livros o contaminaram com um novo olhar, uma nova forma de entender a realidade, e ele não poderia voltar ao que era. Para se entender melhor e entender como palavras tinham tanto poder, Montag procura ajuda e encontra mais do que isso: ele se encontra ao encontrar pessoas como ele.

A obra de Bradbury traz alguns momentos que pareciam ser tão distantes de nós e que, infelizmente, se mostram tão atuais. Quando Beatty, o chefe de Montag, explica que as minorias iniciaram o movimento de destruição de livros, percebemos quão fortes os pequenos passos são. Qualquer caminhada começa neles e por eles – seja ela para o Bem ou para o Mal. Ao ler um poema e deixar a amiga de Mildred, sua esposa, incomodada indica, mais uma vez, o poder das palavras – novamente, para o Bem ou para o Mal. Faherenheit 451 é mais que um livro. Ele é um tributo a todos os autores que foram gentis o suficiente para nos ceder seu tempo e permitir que refletíssemos sobre uma ou outra questão. Ele também é um tributo a todos os leitores que se recusam, como Bradbury se recusou, a ser um “não livro”. Afinal, se todos temos histórias e a perfeita capacidade de refletir, somos todos livros. Não podemos nos esquecer disso e do que Bradbury tão acertadamente coloca na parte intitulada CODA da versão impressa de Faherenheit 451: “Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos.” Que tenhamos a capacidade de apagar o fósforo enquanto ele ainda não se transformou em incêndio e que, acima de tudo, não neguemos o nosso direito ao conhecimento e à literatura. Que Faherenheit 451 nunca seja Brasil 2020 ou qualquer outro lugar em qualquer outro ano..

sábado, 1 de agosto de 2020


“Formas de voltar para casa” é o mais novo romance do aclamado escritor chileno Alejandro Zambra, lançado pelo selo Tusquets, da editora Planeta de Livros do Brasil. A obra já foi agraciada com duas premiações literárias: o Prêmio Altazor e o Prêmio do Conselho Nacional do Livro como melhor romance de 2012 no Chile. Em “Formas de Voltar para casa”, com uma narrativa envolvente, Zambra trata de um tema pesado: a ditadura de Pinochet no Chile e os reflexos desse período na vida de diversas famílias e de famílias diversas. De forma fantástica, o autor mostra, na obra, as muitas vezes em que o narrador precisou voltar para casa: ao fim de um terremoto ou às várias voltas à casa dos pais.

A história vai misturando memórias da infância do narrador, que vão retornando juntamente com seu reencontro com a personagem Claudia, com os fatos presentes de sua vida e assim, o narrador vai escrevendo um romance, ao mesmo tempo em que reconstrói, em sua mente, a verdadeira história dos tempos de chumbo no Chile. Em determinado momento, o narrador diz que era “filho de uma família sem mortos”, enquanto vários de seus amigos, incluindo Cláudia, tiveram a vida deles e de suas famílias devastadas pela crueldade da ditadura de Pinochet. O narrador, ao reconstruir suas memórias, se dá conta de que só tem uma família sem mortos porque seus pais eram de direita e, no fundo, idolatravam Pinochet.

Ao ligar os fatos históricos à vida pessoal das personagens, Zambra deixa o leitor arrepiado em alguns trechos da obra, como, por exemplo, quando Cláudia conta que sua família a levou para ver o Chespirito (Roberto Bolaños) no Estádio Nacional, em 1977,  num ato de amor à filha, já que sabiam que o Estádio Nacional era usado como local de tortura naqueles tempos sombrios, onde muitos de seus companheiros foram maltratados pelo sombrio regime. O livro é também uma linda viagem pela capital do Chile, Santiago, passando pela Paseo Humanada, o coração da cidade e por dose frias de Pisco Sour.

Um detalhe que chama a atenção na obra são os ciclos em que ela se encerra: a narrativa inicia e termina com a ocorrência de terremotos, que realmente aconteceram no Chile, nos anos de 1985 e 2010 e, com a genialidade que pertence somente aos grandes escritores, a narrativa também começa e termina com governos menos humanitários, havendo aí uma grande metáfora, que talvez passe despercebida para alguns leitores, entre os terremotos naturais e as duras formas de governo.

A difícil relação entre pais e filhos, que perpassa a obra, leva o narrador a dizer, no final, que “às vezes precisamos nos vestir com as roupas dos pais e nos olhar demoradamente no espelho”, levando o leitor a uma reflexão profunda sobre suas próprias relações familiares e sobre a familiaridade dessas relações com a política e os direitos humanos. Não é à toa que Zambra é considerado um dos mais relevantes autores da literatura latino-americana contemporânea, e “Formas de voltar para casa” deixa isso ainda mais claro.


segunda-feira, 20 de julho de 2020

Como um livro que tem um título que nos leva a uma ação tão corriqueira, simples e mecânica pode nos fazer refletir tanto sobre nossas vidas? “Arrume a sua cama”, de William H. McRaven, da Editora Planeta de Livros Brasil, tem esse poder. Afinal, o primeiro de todos os passos, para começar um dia, é levantar-se da cama. Se a arrumamos, isso significa que já cumprimos uma missão e que já demos um dos passos que daremos ao longo do dia, da semana, do mês, do ano e da vida. Parece exagero pensar assim, mas é o que o autor propõe durante todo o livro: um exercício de autorreflexão sobre como deixamos uma caminhada inteira para trás apenas porque não demos o primeiro passo...

Dividido em 10 capítulos que, na verdade, são 10 pequenas lições que cada um de nós pode entender como melhor se aplicar em nossa vida, “Arrume a sua cama” é de leitura fácil, rápida e fluida, que nos acompanhará quando fizermos um questionamento ou quando perdermos a motivação de viver. Cada capítulo começa com a frase “Se você quer mudar o mundo...”, que nos dá uma dica do que será tratado naquela lição. Precisamos apenas nos lembrar que o primeiro mundo a ser mudado é o nosso próprio e que ele começa dentro de nós.

Os capítulos parecem ter sido intercalados propositalmente, pois, logo depois de um que equivale a um tapa da realidade, vem um que nos afaga e nos põe no colo sem, no entanto, nos mimar cegamente. William H. McRaven atua como uma mãe que está ensinando o seu filho que a vida será dolorosa em alguns momentos, mas que tudo depende de como você olha para aquela situação e a enfrenta. O ralado no joelho, do tombo da bicicleta, é o que nos fortalece a não querer cair mais. O autor deixa claro que o que nos move é, acima de tudo, o que preferimos enxergar e como decidimos lidar com aquilo que enxergamos. Nossas decisões apenas a nós mesmos cabem.

Em tempos tão sombrios como o que estamos passando, é um alívio encontrar aconchego nas pequenas ações que realizamos durante o dia. Elas equivalem, como o autor coloca, a enfrentar tubarões, a avaliar pessoas pelo tamanho do seu coração e a entender que a vida segue, mesmo quando achamos que não teremos mais forças para enfrentá-la. Ao trazer casos como o de Helen Keller, a menina que era surda e cega e que não se rendeu às suas deficiências, McRaven bate em nossos ombros, aponta o dedo para o horizonte e sussurra em nossos ouvidos: “Olhe lá! Arrume a sua cama e vá descobrir o que a vida lhe reserva. Você irá se surpreender!”

terça-feira, 7 de julho de 2020

Conforme prometemos, segue a resenha do livro incrível de Agatha Christie "Assassinato no campo de golfe", em um relançamento lindo da Globo Livros!📖🥰
Você pode adquirir o livro em nosso site:
Ao terminar a leitura de mais um livro de Agatha Christie, mesmo que seja o seu primeiro, você logo entende o motivo pelo qual ela é conhecida como a dama do crime. Com mais de 4 bilhões de exemplares vendidos de suas obras, Agatha só perde, em vendas, para a Bíblia e para Shakespeare. Mais um de seus grandes sucessos, o livro “Assassinato no campo de golfe” é uma obra-prima do gênero policial, principalmente se considerarmos a data em que foi escrita, 1923.
Sendo o terceiro livro da autora e tendo se passado quase 100 anos de sua primeira publicação, essa obra poderia ter sido escrita hoje, já que a brilhante história, vivida pelo emblemático detetive Hercule Poirot e seu companheiro Hastings, é de tirar o fôlego do leitor. O mistério começa quando Poirot recebe um pedido de ajuda vindo da França, de um milionário chamado Renauld. Chegando à França, encontra seu contratante morto. A partir daí, inicia-se uma investigação, na qual Poirot, com seu ar de superioridade e seu indiscutível carisma, vai desvendando todos os detalhes do crime e surpreendendo todos no final, como sempre. A genialidade da autora é tão grande, que nós, leitores, somos induzidos a acreditar em, pelo menos, quatro desfechos diferentes para a história.
Os leitores mais atentos percebem, também, na narrativa de Agatha, uma crítica à ideia que se tinha de como deveria agir uma mulher, na época. Em uma das passagens, a personagem Cinderela diz à Hastings, o narrador, que a ideia que ele tem de uma mulher é de alguém que se senta em uma cadeira e grita quando vê um rato e diz que pensar dessa forma é pré-histórico. Vemos, nesse trecho e em vários outros da obra, uma crítica à ideia da mulher submissa e passiva, estereótipo feminino esperado na época.
Agatha Christie vai além: ela consegue emplacar uma detetive mulher, Miss Marple, para contrapor a Hercule Poirot, numa época em que o cenário policial era dominado pelos homens. No final, ler Agatha Christie sempre vale a pena e se revela um grande presente, seja pelo mistério das histórias, que fazem com que o leitor não tire os olhos do livro até chegar ao final, seja pelas pitadas de críticas ao machismo, que, muitas vezes, passam despercebidas em sua obra, mas que são extremamente relevantes.

domingo, 14 de junho de 2020

O morro dos ventos uivantes: edição comentada (Clássicos Zahar) por [Emily Brontë, Adriana Lisboa, Maria Luiza X. de A. Borges]

Duas famílias. Um amor proibido. Uma tragédia. Poderia ser “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, mas não é. “O Morro dos Ventos Uivantes”, de uma das irmãs Brontë, é tão ou mais trágico que o universo shakespeariano. Enquanto “Romeu e Julieta” traz ao leitor a reflexão sobre um amor impossível, que ocorreu em apenas alguns dias, “O Morro dos Ventos Uivantes” traz um amor possível, de anos, construído durante períodos de vulnerabilidade e de confiança, mas traído e trocado – ou seja, um amor real, que sussurra aos nossos ouvidos que ele pode existir.

Até hoje, a obra de Emily Brontë entrega ao leitor um leque de sentimentos que variam do asco ao dó, do entendimento à raiva irracional, de maneira menos ou mais intensa, dependendo de como a obra é enxergada por aquele que se entrega a ela. Heathcliff e Catherine tornam-se eternos na pele que vestiram durante todo o romance. Ao leitor, cabe a façanha de despi-los, juntamente com a autora, que transita entre charnecas floridas e casas góticas sombrias, mas que jamais tira seus pés do terreno da alma humana em sua mais crua e cortante forma.

Em “O Morro dos Ventos Uivantes”, não apenas o vento uiva. A dor de ser e de existir também uiva copiosamente em cada capítulo. Essa é uma obra que traz um pedido de socorro feito por quase todas as personagens, porque, nela, o amor não constrói, destrói. O amor avassalador mata aos poucos, congelando as personagens em sua própria dor e gangrenando seu destino. O que era para ser amor, simplesmente, não o é. Ele escolhe não o ser.

O que poderia ter feito de Heathcliff um herói incompreendido o transforma em um anti-herói compreendido: o pequeno órfão cigano, filho do preconceito e da negligência, ainda criança, é adotado informalmente pelo pai de Catherine. O ato o salva de uma provável morte ou miséria, mas o expõe a outro tipo de morte quando ele se apaixona pela sua irmã adotiva e é odiado pelo seu irmão também adotivo. Para Heathcliff, a distorção do amor torna-se a ignição para uma vida de maldades e de vinganças. O amor que ele tanto sente por sua Catherine é a única coisa que poderia salvar sua alma, mas esse amor é trocado por aparências e bons modos. Catherine não suporta a pressão de uma sociedade e escolhe ser bem-sucedida e bem-vista a ser amada incondicionalmente.

Heathcliff pensava saber o que era amor, e o fato de amor não ir ao seu encontro, não o acariciar, não lhe sorrir o amargurava. Todo o ódio que, então, passou a habitar seu coração vagueia por todos os cômodos da casa onde mora, com seu filho e com seus empregados. Seu ódio fantasmagórico o maltrata e somente a voz de sua Catherine, chamando-o para o lado dela, consegue lhe dar uma falsa paz, que só é conseguida quando, ao final da obra, ele fica ao lado dela, morto, mas, pela primeira vez, sereno.

Esse ódio poderia ter perpetuado até a geração seguinte, quando os filhos de Heathcliff e de Catherine se apaixonam, mas não podem ficar juntos por causa de uma briga que não lhes pertence. Ao contrário de seus pais, no entanto, os dois vencem as barreiras do rancor e da vingança e têm um destino oposto àquele que seria o natural aos olhos de Heathcliff e do pai da filha de Catherine, também chamada Catherine. Ao nomear a criança como a mãe, é como se ela tivesse a chance de ser tudo que a mãe poderia ter sido, mas não foi: corajosa.

Brontë mostra que o ser humano pode sempre mudar, porém ela escolhe fazer isso pela atrofia das virtudes. Brontë também enfrentou a sociedade da época e os críticos, pois, embora eles assumissem a grandiosidade da obra, mostrar a podridão humana não parecia adequado naquele tempo. Brontë não apenas mostrou a nossa podridão, mas enfatizou que a distorção do amor é o que nos adoece. Hoje, mais de 170 anos depois de escrito, o que uiva aos leitores é a pergunta que bate à porta durante todo o romance: qual é o real poder do amor?

segunda-feira, 8 de junho de 2020



São cerca de 20 minutos de leitura que nos deixam uma grata reflexão: quem nos tira da solidão? Qual voz nos guia de volta a nós mesmos? A Planeta de Livros Brasil lançou cinco contos durante este período de distanciamento social e de pandemia que nos assolam. Um deles é “O dono do tempo”, que nos dá a mão e nos retira do chão, quando nos encolhemos e pensamos que ali pertencemos.
No conto de Bruno Fontes, as vozes, uma música, os potinhos de comida congelada e algumas mensagens são suficientes para mudar o curso de um dia e de um livro. O narrador abre a porta de um armário, com um espelho gigante, ao convidar o leitor para encontrar sua própria alma junto com ele. Aquele que nunca passou por uma das situações cotidianas narradas por alguém que não se sente bem durante este período ainda assim entenderá que são as ninharias do dia a dia que nos abalam ou nos elevam.
Nosso narrador sem nome se revela nu do início ao fim do conto. Saindo de um banho, que era mais para a alma do que para o corpo, ele já deixa claro que a escuridão de seu ser o sufoca e quase o mata. Durante o conto, que nos cega com os detalhes familiares de uma vida que também levamos, o narrador apenas quer ouvir uma voz: a voz que o tirará do chão. Essa voz pertence a alguém que ele não consegue rotular como amiga ou namorada, porque seu papel habita o meio das duas caixinhas. Para encontrar essa voz, o narrador se aninha nos braços de Clarice Lispector e de Gilberto Gil, mas também não encontra o que procura.
Até que ele-narrador, também conhecido por “eu-leitor”, tem o que deseja, são a voz de sua mãe e um “eu te amo” em forma de potinhos de comida congelada que lhe dão a certeza de que ela estará ali para protegê-lo, independentemente da idade. Quando ele tem essa epifania, a voz que ele deseja retorna e o ajuda a sair do torpor, que o fez dormir no chão da sala enquanto o telefone carregava.
Tudo que nosso narrador precisa entender é que tudo ficará bem e que a solidão não é parte dele, mas apenas um visitante inconveniente. A partir do momento que ele enxerga isso, seu dia muda e o sol volta a esquentar seu coração. Nosso narrador sofre como nós, à espera de uma mensagem, com potinhos de amor, cercado por lampejos de solidão. E, assim como ele, nós também encontraremos nosso sol. Basta ouvirmos as vozes e pensarmos nos potinhos...

sexta-feira, 29 de maio de 2020


Resenha do livro "O TEMPO ENTRE COSTURAS"

Com milhares de cópias vendidas e galardoada com a produção de uma série exibida na Netflix, “O tempo entre costuras”, de Maria Dueñas é um romance histórico daqueles que prendem o leitor do início ao fim. Diferentemente de outras obras do mesmo gênero, “O tempo entre costuras”, misturando personagens reais e ficcionais, traz a história não de uma personagem histórica conhecida, mas da costureira Syra Quiroga, que caiu no rol daqueles heróis que nunca receberam o reconhecimento que mereciam e permaneceram à margem da história.
Aos menos avisados, o romance começa dando a impressão de que será uma história de amor, como tantas outras, em que a mocinha bonita e inocente é enganada e abandonada pelo bonitão sem caráter, se perdendo num mundo cruel, distante da realidade pura vivida por ela até então. Mas aí é que vem a surpresa: a narrativa de Dueñas passa bem longe dessas histórias “clichês”. Syra Quiroga, após ser abandonada, grávida, em Tetuan, com dívidas e sem poder voltar ao país de origem, a Espanha, por conta da guerra civil espanhola, se reconstrói e se reinventa.
De costureira empregada, amante de um canalha, procurada pela polícia, por meio da costura e com uma nova identidade, ela se torna dona de um incrível Ateliê no Marrocos. Em seu ateliê de costura, Syra Quiroga começa a “costurar” fatos e informações, dentro de uma rede de espionagem comandada pelos ingleses, com o intuito de deter a Alemanha de Hitler. Enquanto atende elegantérrimas mulheres de políticos alemães e aprende regras de etiqueta, cultura e finanças com seu leal vizinho Félix, Syra obtém informações relevantes sobre as intenções da Alemanha, provenientes dos maridos dessas mulheres que atende em seu renomado Ateliê.
A obra destaca a beleza e o poder da amizade, pois embora sozinha, Syra conta com a ajuda preciosa das personagens Candelária, Felix, delegado Vasques, Jamila e principalmente de Rosalinda Fox. Diferentemente de Syra, Rosalinda Fox não foi esquecida pela história, já que era bastante conhecida por ser amante de um dos figurões da ditadura de Franco. Mais tarde, descobrimos que Rosalinda é uma das líderes de uma rede de espionagem britânica, da qual Syra passou a fazer parte.
A pensão de Calendária, onde Syra foi acolhida ao começar sua vida em Tetuan é dotada de uma simbologia muito forte na história. Em uma véspera de Natal, Candelária brinda ao “pelotão de infelizes” que moram em sua pensão e aqui se veem traços do movimento literário denominado “tremendismo espanhol”, em que a situação do país, que se encontra em guerra civil, é refletida na caracterização e na desgraça e infelicidade das personagens.
O protagonismo feminino, na obra, seja por meio de Syra Quiroga, Rosalinda Fox, Jamila, Candelária ou qualquer outra, é admirável. Analisando anacronicamente esse romance histórico, o leitor fica fascinado com a coragem daquelas mulheres, que, mesmo em uma época em que a mulher não tinha voz, conseguiam, com bravura, terem suas vozes ouvidas e interferirem positivamente no destino da história mundial.
No decorrer da história, Syra se apaixona por Marcus Logan, que, mais tarde, descobre ser um espião que, como ela, também trabalha para os britânicos. Ao final, não sabemos ao certo os rumos dessa história de amor, mas ficamos encantados e emocionados com a reconstrução e com a força de Syra, que se descobre como uma grande mulher, independentemente de qualquer história de amor!

sábado, 16 de maio de 2020

Resenha da obra "Mulherzinhas", em uma edição fantástica da Planeta de Livros Brasil!


Louisa May Alcott possivelmente não imaginou o impacto que sua obra teria em seus leitores ao longo das décadas. Talvez ela ficasse um pouco curiosa em relação à tradução brasileira de “Little Women”, porque “Mulherzinhas” não representa a força das mulheres da família March, reduzindo-as a mulheres fracas ou apenas a pequenas mulheres. De fracas, as mulheres March não tem coisa alguma e de pequenas mulheres, as meninas têm apenas a idade. Meg, Jo, Beth e Amy são adolescentes em uma época em que meninas de 13 anos deveriam se transformar em mulheres. De certa forma, isso ocorre com elas, e as quatro irmãs também são mulheres-meninas ou meninas-mulheres, o que varia de acordo com o olhar do leitor, em busca de sobrevivência. Entretanto, não são fracas ou pequenas.
“Mulherzinhas” tem personalidade própria e aspirações certeiras. Seu universo literário é repleto de detalhes importantes de uma época dominada pela Guerra Civil e por papéis sociais que deveriam ser cumpridos à risca. Nossas quatro meninas quase fogem à regra da época, mas, antes mesmo da segunda parte do livro, voltam a fazer o que a sociedade lhes impõe – se não de uma forma, de outra – e o que a Guerra lhes permite. O tom da narrativa é simbiótico às irmãs, que, cada uma a seu modo, passam a fazer parte de nossa família enquanto elas existem naquelas linhas. Cada uma das quatro completa um cenário contrastante e colorido, que, às vezes, pode ser sombrio também. No entanto, ao iniciar a obra em uma noite de Natal, o leitor percebe que a esperança permeará as experiências de nossas March.
As quatro irmãs representam as paredes estruturais da obra, com suas personalidades distintas, mas corações unidos. Enquanto Meg sonha em se casar e ter uma família, Jo quer ser uma escritora famosa e independente. Cada uma das mais velhas tem preferência por uma das mais novas: Meg protege Amy, vaidosa, mimada e aspirante à artista, e Jo protege Beth, a mais delicada e altruísta das irmãs. Marmee, a mãe, recusa-se a perder a doçura e seus valores diante das amarguras da vida e funciona como o fio condutor da família, que fica à espera do pai, que ainda não voltou da guerra. Em quaisquer cena
s, no entanto, as quatro irmãs jamais se despedem da esperança. À Beth, cabe ainda o papel da mensagem que a felicidade pode morar onde menos se espera.
O ritmo do livro pode parecer um pouco lento em alguns momentos mais descritivos, porém tais descrições são necessárias para representar o dia a dia de nossas adoráveis mulheres. Um leitor menos atento pode perder momentos preciosos da representação de uma época e de como uma família foi afetada pela Guerra. É no limiar dos detalhes que habita a ternura dentro da força feminina aqui representada pelas irmãs e pela mãe.
É bem provável que cada leitor irá se identificar com uma personagem específica, seja ela uma das irmãs ou Marmee ou Laurie ou o Professor Baher. Também é provável que cada leitor irá identificar, em si ou em algum conhecido, traços do temperamento explosivo de Jo, ou a vaidade pueril de Amy, ou a dependência emocional de Meg, ou o altruísmo, a quietude e a timidez de Beth. Isso acontece porque “Mulherezinhas” não é apenas uma história de época: ela é uma obra que mostra que nossas riquezas residem em nossos corações, em nossas crenças, em nossos sacrifícios e em nossas fontes de felicidade. Na verdade, Alcott não escreveu uma história; ela deu vida a uma ideia e a convenções que são harmoniosamente distribuídas nos arcos de cada irmã e de Marmee e, apesar de não fugir aos padrões de seu tempo, o que a autora proporciona a quem abre as páginas de sua obra-prima é um delicioso caldo quente em uma noite fria de inverno raro.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

O Diário de Anne Frank

A menina que, apesar de tudo, acreditava na bondade humana vem deixando uma lição de vida em tempos pandêmicos. Anne Frank deixou um legado à humanidade ao escrever seu famoso diário, durante seus 2 anos de confinamento, na Segunda Guerra Mundial. “O Diário de Anne Frank”, considerado um patrimônio para a humanidade e, ainda, de valor histórico, tornou-se imprescindível em 2020.
A adolescente judia usou seu diário para descrever dois momentos distintos de sua vida: os que antecederam o minuto em que ela teve que se esconder para tentar sobreviver e os que contam a vida dos judeus que moraram, durante dois anos, de 1942 a 1944, no Anexo Secreto. O que foi publicado como diário não foi escrito como tal, pois Anne o chamava de Kitty, alguém que ela idealizava ser uma pessoa leal, em quem ela pudesse confiar, ou seja, sua melhor amiga.
Aos 13 anos, as trivialidades pueris de uma juventude em desenvolvimento deveriam ter sido a maior preocupação da adolescente. Entretanto, aos 13 anos, Anne teve a rotina de sua vida descontinuada e, em vez de pequenas brigas com colegas e sonhos românticos, ela se viu dividindo um espaço pequeno, porém seguro, com duas outras famílias além da sua. Resistir e sobreviver passaram a ser uma preocupação real. Sonhar e acreditar passaram a ser seu motivo de viver.
De seus relatos de menina adolescente, ficam algumas lições.
A primeira é que o ser humano tem a capacidade infinita de se adaptar, mesmo que seja sob circunstâncias tão ruins. A segunda é que a empatia pode e deve existir. Em 1942, não se usava esse termo para se referir à capacidade que o ser humano tem de se colocar no lugar do outro, refletindo como ele pode aliviar a dor alheia ou se alegrar com as pequenas conquistas de alguém, mas o ato em si sempre existiu. Afinal, os oito judeus que dividiram aquele espaço não teriam sobrevivido por dois anos se não tivessem recebido a ajuda de algumas pessoas. Sem empatia e coragem, hoje, também não teríamos a possibilidade de ler “O Diário de Anne Frank” se Miep Gies não tivesse se arriscado para guardá-lo e entregá-lo à menina ou a quem de sua família sobrevivesse.
A maior lição que Anne nos deixa, entretanto, é a capacidade imensurável de amar e de acreditar. Mesmo em tempos de guerra, quando cada dia viva se tornava uma vitória, Anne jamais deixou de acreditar no ser humano e o amor. Seu diário é uma das provas literárias mais profundas de que o ser humano pode se reconstruir, se ressignificar e se reinventar se ele não deixar de acreditar e de amar...
Quando a obrigatoriedade, inclusive moral, de um distanciamento social existe para que uma pandemia acabe, nós podemos encontrar nossa humanidade e nossa fantástica capacidade de reconstrução a cada dia. Basta acreditar e amar... Afinal, se uma menina de 13 anos conseguiu enxergar isso durante dois anos inteiros de confinamento, em uma guerra mundial, tentando salvar a própria vida, por que todos que podemos ficar em casa não conseguiríamos abrir a janela, olhar para fora e pensar na quantidade de vidas que podem ser salvas? A relatividade de confinamentos deveria nos fazer mais gratos... É... Ainda temos muito a aprender com Anne Frank e sua maturidade...
(Nossos agradecimentos especiais à Giulia Scorzoni, que, nesta foto, gentilmente "devolveu" a gatinha de Anne Frank a ela, sob os pelos da pequena Aurora.  )

quarta-feira, 8 de abril de 2020

História da Violência

O efeito do preconceito, da vergonha e da mentira permeiam a obra ficcional, mas de experiência pessoal, de Édouard Louis. História da Violência é o retrato de como uma sociedade pode modificar ou sufocar alguém. Transitando entre o passado e o presente, Édouard permite que o leitor saiba o que realmente aconteceu naquela noite de Natal apenas quase no fim do livro. O autor convida o leitor a dar um passeio em sua mente, para que toda a sua angústia e sua confusão sejam sentidas. Junto com ele, o leitor viaja pelas fases da vida do autor e percebe como ele enxerga o mundo e como aquele episódio o afetou de diversas maneiras.

Na madrugada de um solitário 25 de dezembro, Édouard conhece Rema e o leva ao seu apartamento. O que Édouard pensa ser apenas um encontro que, no futuro, talvez pudesse se transformar em algo mais sério, torna-se seu pior pesadelo: Rema quase o mata enforcado e o estupra violentamente, a ponto de ele ter sangue escorrendo pelas pernas e manchando sua calça no hospital. No entanto, o crime hediondo não é o único pesadelo que Édouard já teve em sua vida real. Tudo se inicia com o fato de ele se sentir diferente em todas as fases de sua vida. Ao perceber que ele era diferente, sua autopercepção adolescente foi se construindo de maneira negativa, fazendo com que ele se sentisse claustrofóbico em seu corpo e em sua mente. O vilarejo onde morava equivalia a uma prisão, e o julgamento das pessoas do vilarejo o incineravam constantemente.

Quando Édouard finalmente consegue se mudar para a cidade grande, ele demora para se adaptar. A liberdade de poder ser quem ele é vem com extravagâncias, que ele enxergava como necessárias antes de conhecer dois homens que se tornam seus melhores amigos e confidentes. A amizade dos três permite que Édouard consiga entender sua homossexualidade como algo natural, que não precisa de artifícios para ser escondida ou de excentricidade fabricada.

Durante toda a obra, Édouard fala sobre como a mentira acontece em pequenos gestos e nas falas daqueles que você ama e que deveriam amar você incondicionalmente. A mentira não o assusta e define sua visão de mundo. Esconder a verdade, para ele, é apenas um ato de sobrevivência e, dele, vem parte da sua destruição naquela noite de Natal. Se ele não enxergasse a mentira como algo tão banal, talvez ele tivesse percebido que seu encontro com Rema não terminaria bem. Talvez ele tivesse fugido. Talvez, apenas talvez, ele tivesse entendido que um cachecol em volta do seu pescoço não significasse uma brincadeira após o roubo de seu celular.

Édouard conta com a fluidez de uma criança tudo que lhe vem à mente. Muitas vezes, o leitor se pergunta se o que ele está contando e verdade ou se são suas impressões, vistas pelos olhos contaminados de quem sempre viveu entre mentiras, preconceito e vergonha. Não há como saber e tampouco deveria interessar. O que ele quer dizer é que a mentira e o preconceito sempre estarão presentes em nossas vidas. Ele, que até aquele Natal, não se sentia preconceituoso, percebe que o preconceito também o atingiu: a etnia de Rema é uma das mais desprezadas na França, e Édouard, depois do estupro, passa a vê-la como algo ruim, transferindo a raiva que tem de um indivíduo a um povo todo.

Apesar de ser uma obra muito dolorosa, os amigos de Édouard dão a ela um tom de solidez e de promessa de um futuro melhor. No momento máximo de sua solidão, Édouard imagina que seus dois melhores amigos jamais seriam chamados para o seu enterro, pois eles não existem, aos olhos da família e de quem o conhece.  Isso lhe dói mais do que qualquer coisa. Ao fim da obra, quando o leitor percebe que os dois acolhem Édouard e que Édouard sabe que eles sempre encontrarão um jeito de estar com ele, um leve sopro de esperança invade o leitor e, ao abraçar sua solitude, Édouard também abraça o leitor e a dor de várias verdades.

quarta-feira, 18 de março de 2020

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Na epígrafe de sua mais famosa e atual obra, José Saramago já determina o tom da narrativa que o leitor irá encontrar: está em suas mãos a escolha entre o ver e o não ver, entre o agir e o não agir – sabendo que, muitas vezes, agir significa não fazer coisa alguma, por não ser o momento certo. “Ensaio sobre a cegueira” é um livro que choca aquele que tem a coragem de abri-lo e de desfrutá-lo, ao mesmo tempo em que o marca e que o toca por toda a vida. “Ensaio sobre a cegueira” extrapola as barreiras da cegueira do corpo e atinge a cegueira da alma de uma maneira mais próxima a nós do que desejaríamos.
Com o mundo tendo sido acometido por uma cegueira branca e contagiosa, Saramago nos presenteia com a mulher do médico, que é a única personagem que não foi atingida pela epidemia. A ela, portanto, cabe o peso de enxergar o que ninguém mais vê, de guiar quando todos estão perdidos, de tomar decisões quando ninguém mais pode e de entender quando ninguém mais sequer tenta. A cegueira incomum também retira de dentro de todos aquilo que lhes recheia, que preenche seu coração e que comanda seus passos. Enquanto alguns mostram que são feitos de amor, de gentileza, de bondade e de sonhos, outros não percebem que são feitos de piche ou de lama ou de pedra. A cegueira do livro, assim como uma pandemia na vida real, vem provar que o ser humano precisa de testes para saber quem ele realmente é.
O fato de nenhuma personagem ter nome e de poder ser identificada apenas por uma caraterística não permanente (mulher do médico, rapariga dos óculos escuros, velho da venda preta) reitera a ideia de que somos iguais, sem qualquer hierarquia na escala humana, e que nosso corpo é uma mera carcaça que abriga nosso mais profundo sentimento. A mulher do médico, íntegra e altruísta, olha para dentro dela e para dentro daqueles que ela guia – tanto fisicamente, quanto emocionalmente – e demonstra que há pessoas que vêm à Terra com uma missão amarga, porém necessária. É ela que transforma sua solidão em ação, seu medo em esperança, sua fome de viver em alimento para quem ela acolhe.
Em meio ao caos de uma cidade não identificada, com pessoas nuas e sujas de corpo e de alma, banhada com desespero, escuridão e abandono, com corpos espalhados e comidos por animais que também precisam se alimentar, nossas personagens vão deixando um pequeno rastro de luz por onde passam. Elas não abandonam uma a outra; elas dão as mãos para se guiarem; elas sabem que o coletivo é mais importante que o individual. Elas não precisam de uma igreja para demonstrar sua fé ou sua ética: elas as exercem sempre que podem, sem que sejam vigiadas, sem que façam por medo do depois. O que importa é o agora, pois o agora é tudo que elas têm.
A lealdade, a escolha pelo certo em uma situação sombria, o acolhimento e a ajuda aparecem em cada cena da obra em meio ao que o ser humano mostra de podridão. O velho da venda preta sabe que é um fardo, mas todos sabem que ajudá-lo é o correto. A ajuda não é negada. O rapazinho estrábico só precisa de uma de uma mãe, e ela vem de uma prostituta, que vende o corpo, mas não o instinto materno que a ilumina. O médico precisa de alguém que o socorra e que o fortaleça, e sua mulher o entende e o levanta. Nossas personagens mostram que uma taça com água é a celebração à vida e que uma chuva observada da janela é o renascimento. Nossas personagens são o nosso reflexo em algum momento de nossas vidas...
Ao ter aberto seu livro com a frase que inicia esse texto e ao ter feito com que o leitor refletisse sobre a hipocrisia que os cerca, é possível que Saramago tenha sorrido amargamente e pensado: “Se pudesses ver, tu escolherias enxergar? Se pudesses enxergar, tu repararias?”. Mesmo que isso não tenha acontecido, fica aqui a pergunta: será que reparamos apenas quando observamos o outro ou será que reparamos quando consertamos o que enxergamos de errado?
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quinta-feira, 12 de março de 2020

Conforme prometemos, aqui vai a resenha do livro "Das cinzas de Onira", lançamento fantástico da Planeta de Livros Brasil. A foto traz uma das ilustrações da obra, feita por Esdras Gomes, em que há o diálogo com o personagem de Kafka! Compre o livro em nosso site:

Segue nossa resenha:

Em seu livro de estreia, Umberto Mannarino nos presenteia com uma ficção espetacular. “Das cinzas de Onira”, à primeira vista, aparenta ser um livro infantojuvenil, com cenários e personagens incríveis e cheios de fantasia. Como em “Alice no país das maravilhas”, que é um dos livros em que o autor se inspirou, a menina Olívia, após sobreviver a um incêndio e não se lembrar de nada o que aconteceu, mergulha num mundo onde, por alguns minutos, nada parece fazer sentido e, logo depois, tudo parece fazer. Além disso, as coisas, como se apresentam, parecem ter ligações e semelhanças com sua vida real. Olívia não encontra um coelho e um chapeleiro malucos, mas encontra um major, que parece um boneco de pano e comanda um exército de seres estranhos que obedecem sem questionar e um sargento que tem a aparência de um peixe. À medida que vamos virando as páginas do livro, nós nos deparamos com inúmeras metáforas, que vão nos fazendo refletir e entender que a história, na verdade, não é uma história infantojuvenil e de fantasia, e sim uma história que se mostra mais profunda a cada página.
Aos poucos, o leitor, por meio das metáforas e de outros recursos estilísticos presentes na obra, vai desvendando o mistério que Onira esconde e percebe que todo esse universo onírico tem uma relação umbilical com a vida real de Olívia. A obra “Das cinzas de Onira” traz também intertextualidades geniais, como aquela que faz com a obra “A metamorfose”, de Franz Kafka. Essa intertextualidade atinge seu ápice no momento em que a personagem principal, Olívia, em uma de suas incursões à Onira, mantém um diálogo com a barata chamada “Sam”, fazendo referência ao caixeiro viajante Gregor Samsa, o personagem mais famoso de toda a obra de Kafka.
Ao ler essa história incrível, vale a pena ficar atento a cada detalhe da história, como o tamanho do major (que era maior que qualquer ser humano), os fantasmas que são caçados pelo exército de Onira ou as aranhas, que cobrem Onira com suas teias, pois cada um desses detalhes é de extrema relevância para a compreensão profunda e verdadeira da obra. As ilustrações de Esdra Gomes e o recurso utilizado pelo autor em alguns trechos do livro, quando o narrador conversa com o leitor, fazem com que ele mergulhe em Onira, juntamente com Olívia e assim, compreenda e reflita acerca de seu mundo e, principalmente, sobre como a fantasia pode transformar positivamente uma realidade, muitas vezes, dura e dolorosa de crianças, jovens e adultos.