segunda-feira, 14 de setembro de 2020


Esta não é uma história de amor, tampouco é uma história de ódio. Esta é uma história de como o ser humano é complexo e egocêntrico, mesmo quando ele se depara com opções que permitam que ele escolha ser melhor ou simplesmente olhar para fora de si mesmo, a fim de enxergar o outro e de o acolher em sua vida como ele é. Esta é uma história cuja verdade jamais saberemos, pois ela é o que menos importa. Esta é uma das obras-primas do mestre da narração, um homem negro, pobre e epilético, que foi rechaçado por seus colegas contemporâneos de escrita. Esta é a história que Machado de Assis escreveu para mostrar ao mundo o poder das palavras e do olhar. Esta é “Dom Casmurro”.

Há mais de cem anos, Machado de Assis não imaginava o poder que sua Capitu e que seu Bentinho exerceriam sobre milhares e milhares de leitores. Machado de Assis partiu deste mundo sem saber que a pergunta “Traiu ou não traiu?” seria um divisor de águas. Por ser um gênio da literatura e um leitor de almas, Machado de Assis escreveu aquilo que se transformou em infindáveis discussões, até mesmo nos lugares mais improváveis, como bares e esquinas. Capitu, a dona do olhar de cigana dissimulada, ainda povoa mentes curiosas e divide o palco anímico com o eterno menino Bento, dono de pensamentos sórdidos, mas de palavras sábias.

A grande obra machadiana faz com que o leitor encontre motivos dentro dela mesma para  uma verdade em que ele já acredita ou, ainda, preza ou despreza. Nenhuma personagem machadiana nesse livro é isenta de culpa – seja ela do que for – ou de maldades, mesmo que disfarçada de promessas feitas em nascimentos ou recusa de amor ou pequenas mentiras. O leitor, ao perceber isso, costura sua tese como uma colcha de retalhos e prova sua teoria com trechos daqui e de acolá. “Dom Casmurro” é uma porta aberta para todos nós e para nossas crenças mais profundas, com a aparência de uma simples opinião.

O “triângulo amoroso” mais famoso do Brasil apenas guia o leitor pelo caminho da imaginação porque o narrador, o próprio Bentinho, faz de suas palavras grandes aliadas. Ao dedicar capítulos curtos, porém completos, a um diálogo com os leitores, principalmente as femininas, Bento mostra sua gentileza e sua fragilidade, evidenciando seu lado vulnerável, que o mundo destruiu friamente com uma arma chamada mulher. Capitu, aos olhos de Bentinho, torna-se, portanto, alguém-objeto, forte, dissimulada e inteligente, capaz de tudo para satisfazer seus desejos, considerando-se dona de suas vontades, não olhando para fora si e machucando aqueles que cruzam seu caminho. Escobar é visto como o efeito colateral de uma amizade e de uma suposta paixão avassaladora, que até depois de sua morte assombra o amigo, com um fruto de nome Ezequiel.

“Dom Casmurro” parece ser a história de um amor que não deu certo, que foi corrompido por uma traição e alimentado por um ciúme ironicamente racional. Na verdade, esse é apenas o pano de fundo para que o leitor adentre sua própria alma, sem se sentir coagido ou amedrontado. A (suposta) traição nunca foi o cerne real da história. Ao fazer suas escolhas diante do enredo machadiano, o leitor tem que lidar com seus medos, suas inseguranças, suas crenças e sua percepção do mundo e das pessoas que o cercam. O leitor se encontra nas páginas extremante cuidadosas dessa obra. “Dom Casmurro” oferece ao leitor uma passagem de ida ao descobrimento de suas forças motrizes e de seus amortecimentos, de maneira implacável e única.  Há apenas uma sequela dessa leitura: enquanto o caminho para ir a esse encontro é percorrido ladeira abaixo em uma manhã fresquinha, a volta ocorre no fim de um dia de caminhada árdua, embaixo de um sol escaldante, sem água e sem uma sombra sequer. Quem lê “Dom Casmurro” nunca mais é aquele que não o havia lido...

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário