domingo, 14 de junho de 2020

O morro dos ventos uivantes: edição comentada (Clássicos Zahar) por [Emily Brontë, Adriana Lisboa, Maria Luiza X. de A. Borges]

Duas famílias. Um amor proibido. Uma tragédia. Poderia ser “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare, mas não é. “O Morro dos Ventos Uivantes”, de uma das irmãs Brontë, é tão ou mais trágico que o universo shakespeariano. Enquanto “Romeu e Julieta” traz ao leitor a reflexão sobre um amor impossível, que ocorreu em apenas alguns dias, “O Morro dos Ventos Uivantes” traz um amor possível, de anos, construído durante períodos de vulnerabilidade e de confiança, mas traído e trocado – ou seja, um amor real, que sussurra aos nossos ouvidos que ele pode existir.

Até hoje, a obra de Emily Brontë entrega ao leitor um leque de sentimentos que variam do asco ao dó, do entendimento à raiva irracional, de maneira menos ou mais intensa, dependendo de como a obra é enxergada por aquele que se entrega a ela. Heathcliff e Catherine tornam-se eternos na pele que vestiram durante todo o romance. Ao leitor, cabe a façanha de despi-los, juntamente com a autora, que transita entre charnecas floridas e casas góticas sombrias, mas que jamais tira seus pés do terreno da alma humana em sua mais crua e cortante forma.

Em “O Morro dos Ventos Uivantes”, não apenas o vento uiva. A dor de ser e de existir também uiva copiosamente em cada capítulo. Essa é uma obra que traz um pedido de socorro feito por quase todas as personagens, porque, nela, o amor não constrói, destrói. O amor avassalador mata aos poucos, congelando as personagens em sua própria dor e gangrenando seu destino. O que era para ser amor, simplesmente, não o é. Ele escolhe não o ser.

O que poderia ter feito de Heathcliff um herói incompreendido o transforma em um anti-herói compreendido: o pequeno órfão cigano, filho do preconceito e da negligência, ainda criança, é adotado informalmente pelo pai de Catherine. O ato o salva de uma provável morte ou miséria, mas o expõe a outro tipo de morte quando ele se apaixona pela sua irmã adotiva e é odiado pelo seu irmão também adotivo. Para Heathcliff, a distorção do amor torna-se a ignição para uma vida de maldades e de vinganças. O amor que ele tanto sente por sua Catherine é a única coisa que poderia salvar sua alma, mas esse amor é trocado por aparências e bons modos. Catherine não suporta a pressão de uma sociedade e escolhe ser bem-sucedida e bem-vista a ser amada incondicionalmente.

Heathcliff pensava saber o que era amor, e o fato de amor não ir ao seu encontro, não o acariciar, não lhe sorrir o amargurava. Todo o ódio que, então, passou a habitar seu coração vagueia por todos os cômodos da casa onde mora, com seu filho e com seus empregados. Seu ódio fantasmagórico o maltrata e somente a voz de sua Catherine, chamando-o para o lado dela, consegue lhe dar uma falsa paz, que só é conseguida quando, ao final da obra, ele fica ao lado dela, morto, mas, pela primeira vez, sereno.

Esse ódio poderia ter perpetuado até a geração seguinte, quando os filhos de Heathcliff e de Catherine se apaixonam, mas não podem ficar juntos por causa de uma briga que não lhes pertence. Ao contrário de seus pais, no entanto, os dois vencem as barreiras do rancor e da vingança e têm um destino oposto àquele que seria o natural aos olhos de Heathcliff e do pai da filha de Catherine, também chamada Catherine. Ao nomear a criança como a mãe, é como se ela tivesse a chance de ser tudo que a mãe poderia ter sido, mas não foi: corajosa.

Brontë mostra que o ser humano pode sempre mudar, porém ela escolhe fazer isso pela atrofia das virtudes. Brontë também enfrentou a sociedade da época e os críticos, pois, embora eles assumissem a grandiosidade da obra, mostrar a podridão humana não parecia adequado naquele tempo. Brontë não apenas mostrou a nossa podridão, mas enfatizou que a distorção do amor é o que nos adoece. Hoje, mais de 170 anos depois de escrito, o que uiva aos leitores é a pergunta que bate à porta durante todo o romance: qual é o real poder do amor?

segunda-feira, 8 de junho de 2020



São cerca de 20 minutos de leitura que nos deixam uma grata reflexão: quem nos tira da solidão? Qual voz nos guia de volta a nós mesmos? A Planeta de Livros Brasil lançou cinco contos durante este período de distanciamento social e de pandemia que nos assolam. Um deles é “O dono do tempo”, que nos dá a mão e nos retira do chão, quando nos encolhemos e pensamos que ali pertencemos.
No conto de Bruno Fontes, as vozes, uma música, os potinhos de comida congelada e algumas mensagens são suficientes para mudar o curso de um dia e de um livro. O narrador abre a porta de um armário, com um espelho gigante, ao convidar o leitor para encontrar sua própria alma junto com ele. Aquele que nunca passou por uma das situações cotidianas narradas por alguém que não se sente bem durante este período ainda assim entenderá que são as ninharias do dia a dia que nos abalam ou nos elevam.
Nosso narrador sem nome se revela nu do início ao fim do conto. Saindo de um banho, que era mais para a alma do que para o corpo, ele já deixa claro que a escuridão de seu ser o sufoca e quase o mata. Durante o conto, que nos cega com os detalhes familiares de uma vida que também levamos, o narrador apenas quer ouvir uma voz: a voz que o tirará do chão. Essa voz pertence a alguém que ele não consegue rotular como amiga ou namorada, porque seu papel habita o meio das duas caixinhas. Para encontrar essa voz, o narrador se aninha nos braços de Clarice Lispector e de Gilberto Gil, mas também não encontra o que procura.
Até que ele-narrador, também conhecido por “eu-leitor”, tem o que deseja, são a voz de sua mãe e um “eu te amo” em forma de potinhos de comida congelada que lhe dão a certeza de que ela estará ali para protegê-lo, independentemente da idade. Quando ele tem essa epifania, a voz que ele deseja retorna e o ajuda a sair do torpor, que o fez dormir no chão da sala enquanto o telefone carregava.
Tudo que nosso narrador precisa entender é que tudo ficará bem e que a solidão não é parte dele, mas apenas um visitante inconveniente. A partir do momento que ele enxerga isso, seu dia muda e o sol volta a esquentar seu coração. Nosso narrador sofre como nós, à espera de uma mensagem, com potinhos de amor, cercado por lampejos de solidão. E, assim como ele, nós também encontraremos nosso sol. Basta ouvirmos as vozes e pensarmos nos potinhos...