quinta-feira, 16 de abril de 2020

O Diário de Anne Frank

A menina que, apesar de tudo, acreditava na bondade humana vem deixando uma lição de vida em tempos pandêmicos. Anne Frank deixou um legado à humanidade ao escrever seu famoso diário, durante seus 2 anos de confinamento, na Segunda Guerra Mundial. “O Diário de Anne Frank”, considerado um patrimônio para a humanidade e, ainda, de valor histórico, tornou-se imprescindível em 2020.
A adolescente judia usou seu diário para descrever dois momentos distintos de sua vida: os que antecederam o minuto em que ela teve que se esconder para tentar sobreviver e os que contam a vida dos judeus que moraram, durante dois anos, de 1942 a 1944, no Anexo Secreto. O que foi publicado como diário não foi escrito como tal, pois Anne o chamava de Kitty, alguém que ela idealizava ser uma pessoa leal, em quem ela pudesse confiar, ou seja, sua melhor amiga.
Aos 13 anos, as trivialidades pueris de uma juventude em desenvolvimento deveriam ter sido a maior preocupação da adolescente. Entretanto, aos 13 anos, Anne teve a rotina de sua vida descontinuada e, em vez de pequenas brigas com colegas e sonhos românticos, ela se viu dividindo um espaço pequeno, porém seguro, com duas outras famílias além da sua. Resistir e sobreviver passaram a ser uma preocupação real. Sonhar e acreditar passaram a ser seu motivo de viver.
De seus relatos de menina adolescente, ficam algumas lições.
A primeira é que o ser humano tem a capacidade infinita de se adaptar, mesmo que seja sob circunstâncias tão ruins. A segunda é que a empatia pode e deve existir. Em 1942, não se usava esse termo para se referir à capacidade que o ser humano tem de se colocar no lugar do outro, refletindo como ele pode aliviar a dor alheia ou se alegrar com as pequenas conquistas de alguém, mas o ato em si sempre existiu. Afinal, os oito judeus que dividiram aquele espaço não teriam sobrevivido por dois anos se não tivessem recebido a ajuda de algumas pessoas. Sem empatia e coragem, hoje, também não teríamos a possibilidade de ler “O Diário de Anne Frank” se Miep Gies não tivesse se arriscado para guardá-lo e entregá-lo à menina ou a quem de sua família sobrevivesse.
A maior lição que Anne nos deixa, entretanto, é a capacidade imensurável de amar e de acreditar. Mesmo em tempos de guerra, quando cada dia viva se tornava uma vitória, Anne jamais deixou de acreditar no ser humano e o amor. Seu diário é uma das provas literárias mais profundas de que o ser humano pode se reconstruir, se ressignificar e se reinventar se ele não deixar de acreditar e de amar...
Quando a obrigatoriedade, inclusive moral, de um distanciamento social existe para que uma pandemia acabe, nós podemos encontrar nossa humanidade e nossa fantástica capacidade de reconstrução a cada dia. Basta acreditar e amar... Afinal, se uma menina de 13 anos conseguiu enxergar isso durante dois anos inteiros de confinamento, em uma guerra mundial, tentando salvar a própria vida, por que todos que podemos ficar em casa não conseguiríamos abrir a janela, olhar para fora e pensar na quantidade de vidas que podem ser salvas? A relatividade de confinamentos deveria nos fazer mais gratos... É... Ainda temos muito a aprender com Anne Frank e sua maturidade...
(Nossos agradecimentos especiais à Giulia Scorzoni, que, nesta foto, gentilmente "devolveu" a gatinha de Anne Frank a ela, sob os pelos da pequena Aurora.  )

quarta-feira, 8 de abril de 2020

História da Violência

O efeito do preconceito, da vergonha e da mentira permeiam a obra ficcional, mas de experiência pessoal, de Édouard Louis. História da Violência é o retrato de como uma sociedade pode modificar ou sufocar alguém. Transitando entre o passado e o presente, Édouard permite que o leitor saiba o que realmente aconteceu naquela noite de Natal apenas quase no fim do livro. O autor convida o leitor a dar um passeio em sua mente, para que toda a sua angústia e sua confusão sejam sentidas. Junto com ele, o leitor viaja pelas fases da vida do autor e percebe como ele enxerga o mundo e como aquele episódio o afetou de diversas maneiras.

Na madrugada de um solitário 25 de dezembro, Édouard conhece Rema e o leva ao seu apartamento. O que Édouard pensa ser apenas um encontro que, no futuro, talvez pudesse se transformar em algo mais sério, torna-se seu pior pesadelo: Rema quase o mata enforcado e o estupra violentamente, a ponto de ele ter sangue escorrendo pelas pernas e manchando sua calça no hospital. No entanto, o crime hediondo não é o único pesadelo que Édouard já teve em sua vida real. Tudo se inicia com o fato de ele se sentir diferente em todas as fases de sua vida. Ao perceber que ele era diferente, sua autopercepção adolescente foi se construindo de maneira negativa, fazendo com que ele se sentisse claustrofóbico em seu corpo e em sua mente. O vilarejo onde morava equivalia a uma prisão, e o julgamento das pessoas do vilarejo o incineravam constantemente.

Quando Édouard finalmente consegue se mudar para a cidade grande, ele demora para se adaptar. A liberdade de poder ser quem ele é vem com extravagâncias, que ele enxergava como necessárias antes de conhecer dois homens que se tornam seus melhores amigos e confidentes. A amizade dos três permite que Édouard consiga entender sua homossexualidade como algo natural, que não precisa de artifícios para ser escondida ou de excentricidade fabricada.

Durante toda a obra, Édouard fala sobre como a mentira acontece em pequenos gestos e nas falas daqueles que você ama e que deveriam amar você incondicionalmente. A mentira não o assusta e define sua visão de mundo. Esconder a verdade, para ele, é apenas um ato de sobrevivência e, dele, vem parte da sua destruição naquela noite de Natal. Se ele não enxergasse a mentira como algo tão banal, talvez ele tivesse percebido que seu encontro com Rema não terminaria bem. Talvez ele tivesse fugido. Talvez, apenas talvez, ele tivesse entendido que um cachecol em volta do seu pescoço não significasse uma brincadeira após o roubo de seu celular.

Édouard conta com a fluidez de uma criança tudo que lhe vem à mente. Muitas vezes, o leitor se pergunta se o que ele está contando e verdade ou se são suas impressões, vistas pelos olhos contaminados de quem sempre viveu entre mentiras, preconceito e vergonha. Não há como saber e tampouco deveria interessar. O que ele quer dizer é que a mentira e o preconceito sempre estarão presentes em nossas vidas. Ele, que até aquele Natal, não se sentia preconceituoso, percebe que o preconceito também o atingiu: a etnia de Rema é uma das mais desprezadas na França, e Édouard, depois do estupro, passa a vê-la como algo ruim, transferindo a raiva que tem de um indivíduo a um povo todo.

Apesar de ser uma obra muito dolorosa, os amigos de Édouard dão a ela um tom de solidez e de promessa de um futuro melhor. No momento máximo de sua solidão, Édouard imagina que seus dois melhores amigos jamais seriam chamados para o seu enterro, pois eles não existem, aos olhos da família e de quem o conhece.  Isso lhe dói mais do que qualquer coisa. Ao fim da obra, quando o leitor percebe que os dois acolhem Édouard e que Édouard sabe que eles sempre encontrarão um jeito de estar com ele, um leve sopro de esperança invade o leitor e, ao abraçar sua solitude, Édouard também abraça o leitor e a dor de várias verdades.