quarta-feira, 18 de março de 2020

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Na epígrafe de sua mais famosa e atual obra, José Saramago já determina o tom da narrativa que o leitor irá encontrar: está em suas mãos a escolha entre o ver e o não ver, entre o agir e o não agir – sabendo que, muitas vezes, agir significa não fazer coisa alguma, por não ser o momento certo. “Ensaio sobre a cegueira” é um livro que choca aquele que tem a coragem de abri-lo e de desfrutá-lo, ao mesmo tempo em que o marca e que o toca por toda a vida. “Ensaio sobre a cegueira” extrapola as barreiras da cegueira do corpo e atinge a cegueira da alma de uma maneira mais próxima a nós do que desejaríamos.
Com o mundo tendo sido acometido por uma cegueira branca e contagiosa, Saramago nos presenteia com a mulher do médico, que é a única personagem que não foi atingida pela epidemia. A ela, portanto, cabe o peso de enxergar o que ninguém mais vê, de guiar quando todos estão perdidos, de tomar decisões quando ninguém mais pode e de entender quando ninguém mais sequer tenta. A cegueira incomum também retira de dentro de todos aquilo que lhes recheia, que preenche seu coração e que comanda seus passos. Enquanto alguns mostram que são feitos de amor, de gentileza, de bondade e de sonhos, outros não percebem que são feitos de piche ou de lama ou de pedra. A cegueira do livro, assim como uma pandemia na vida real, vem provar que o ser humano precisa de testes para saber quem ele realmente é.
O fato de nenhuma personagem ter nome e de poder ser identificada apenas por uma caraterística não permanente (mulher do médico, rapariga dos óculos escuros, velho da venda preta) reitera a ideia de que somos iguais, sem qualquer hierarquia na escala humana, e que nosso corpo é uma mera carcaça que abriga nosso mais profundo sentimento. A mulher do médico, íntegra e altruísta, olha para dentro dela e para dentro daqueles que ela guia – tanto fisicamente, quanto emocionalmente – e demonstra que há pessoas que vêm à Terra com uma missão amarga, porém necessária. É ela que transforma sua solidão em ação, seu medo em esperança, sua fome de viver em alimento para quem ela acolhe.
Em meio ao caos de uma cidade não identificada, com pessoas nuas e sujas de corpo e de alma, banhada com desespero, escuridão e abandono, com corpos espalhados e comidos por animais que também precisam se alimentar, nossas personagens vão deixando um pequeno rastro de luz por onde passam. Elas não abandonam uma a outra; elas dão as mãos para se guiarem; elas sabem que o coletivo é mais importante que o individual. Elas não precisam de uma igreja para demonstrar sua fé ou sua ética: elas as exercem sempre que podem, sem que sejam vigiadas, sem que façam por medo do depois. O que importa é o agora, pois o agora é tudo que elas têm.
A lealdade, a escolha pelo certo em uma situação sombria, o acolhimento e a ajuda aparecem em cada cena da obra em meio ao que o ser humano mostra de podridão. O velho da venda preta sabe que é um fardo, mas todos sabem que ajudá-lo é o correto. A ajuda não é negada. O rapazinho estrábico só precisa de uma de uma mãe, e ela vem de uma prostituta, que vende o corpo, mas não o instinto materno que a ilumina. O médico precisa de alguém que o socorra e que o fortaleça, e sua mulher o entende e o levanta. Nossas personagens mostram que uma taça com água é a celebração à vida e que uma chuva observada da janela é o renascimento. Nossas personagens são o nosso reflexo em algum momento de nossas vidas...
Ao ter aberto seu livro com a frase que inicia esse texto e ao ter feito com que o leitor refletisse sobre a hipocrisia que os cerca, é possível que Saramago tenha sorrido amargamente e pensado: “Se pudesses ver, tu escolherias enxergar? Se pudesses enxergar, tu repararias?”. Mesmo que isso não tenha acontecido, fica aqui a pergunta: será que reparamos apenas quando observamos o outro ou será que reparamos quando consertamos o que enxergamos de errado?
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quinta-feira, 12 de março de 2020

Conforme prometemos, aqui vai a resenha do livro "Das cinzas de Onira", lançamento fantástico da Planeta de Livros Brasil. A foto traz uma das ilustrações da obra, feita por Esdras Gomes, em que há o diálogo com o personagem de Kafka! Compre o livro em nosso site:

Segue nossa resenha:

Em seu livro de estreia, Umberto Mannarino nos presenteia com uma ficção espetacular. “Das cinzas de Onira”, à primeira vista, aparenta ser um livro infantojuvenil, com cenários e personagens incríveis e cheios de fantasia. Como em “Alice no país das maravilhas”, que é um dos livros em que o autor se inspirou, a menina Olívia, após sobreviver a um incêndio e não se lembrar de nada o que aconteceu, mergulha num mundo onde, por alguns minutos, nada parece fazer sentido e, logo depois, tudo parece fazer. Além disso, as coisas, como se apresentam, parecem ter ligações e semelhanças com sua vida real. Olívia não encontra um coelho e um chapeleiro malucos, mas encontra um major, que parece um boneco de pano e comanda um exército de seres estranhos que obedecem sem questionar e um sargento que tem a aparência de um peixe. À medida que vamos virando as páginas do livro, nós nos deparamos com inúmeras metáforas, que vão nos fazendo refletir e entender que a história, na verdade, não é uma história infantojuvenil e de fantasia, e sim uma história que se mostra mais profunda a cada página.
Aos poucos, o leitor, por meio das metáforas e de outros recursos estilísticos presentes na obra, vai desvendando o mistério que Onira esconde e percebe que todo esse universo onírico tem uma relação umbilical com a vida real de Olívia. A obra “Das cinzas de Onira” traz também intertextualidades geniais, como aquela que faz com a obra “A metamorfose”, de Franz Kafka. Essa intertextualidade atinge seu ápice no momento em que a personagem principal, Olívia, em uma de suas incursões à Onira, mantém um diálogo com a barata chamada “Sam”, fazendo referência ao caixeiro viajante Gregor Samsa, o personagem mais famoso de toda a obra de Kafka.
Ao ler essa história incrível, vale a pena ficar atento a cada detalhe da história, como o tamanho do major (que era maior que qualquer ser humano), os fantasmas que são caçados pelo exército de Onira ou as aranhas, que cobrem Onira com suas teias, pois cada um desses detalhes é de extrema relevância para a compreensão profunda e verdadeira da obra. As ilustrações de Esdra Gomes e o recurso utilizado pelo autor em alguns trechos do livro, quando o narrador conversa com o leitor, fazem com que ele mergulhe em Onira, juntamente com Olívia e assim, compreenda e reflita acerca de seu mundo e, principalmente, sobre como a fantasia pode transformar positivamente uma realidade, muitas vezes, dura e dolorosa de crianças, jovens e adultos.