segunda-feira, 24 de agosto de 2020

 

Bonsai & A vida privada das árvores.

A injustiça literária que ocorre com Alejandro Zambra no Brasil não é compreensível. O autor usa uma linguagem clara e explora fatos cotidianos em suas obras, que, teoricamente, são acessíveis a todo tipo de público. O que o diferencia é o olhar e a maneira de contar uma história. Em seu “Formas de voltar para casa” (que já teve uma resenha publicada aqui), a sensibilidade e a emoção arrebatam o leitor desde o início. Isso não é diferente em “Bonsai & A vida privada das árvores”.

Um livro cujo título é tão chamativo pode assustar o leitor comum. Afinal, o que se tem para falar sobre um bonsai ou sobre árvores? Elas realmente têm uma vida privada? O que Zambra faz é mágico, pois ele transporta seu leitor a duas novelas extremamente possíveis e plausíveis. Ele oferece ao leitor a passagem para a mente de suas personagens, e o leitor, por também saber que a mente humana funciona daquela maneira, permite se envolver com as situações que lhe são apresentadas.

A primeira novela do livro, “Bonsai”, informa o leitor, no primeiro parágrafo, o que acontecerá no fim da história, mas a inteligência e a perspicácia de Zambra dominam aquele que se abriu a ele, de tal forma, que, a partir do segundo capítulo, há o total esquecimento de que o final já foi revelado. Com sua escrita e seus imbricamentos, Zambra abre as portas para a vida de dois adolescentes que se conhecem e que se irritam mutuamente, mas que mantêm um relacionamento sem muita seriedade. Em algum momento, há uma separação e, depois, como na vida real, os dois se reencontram em situações adversas e retomam o relacionamento, para haver uma nova separação. Essa história, que é tão banal, abraça o leitor em todos os momentos, porém, na cena final, o leitor sente vontade de abraçar Julio, pois todos sofremos com ele e com o impacto que sua solidão causa.

Em “A vida privada das árvores”, Zambra cria tantas expectativas no leitor que, se ele estiver sentado, ele provavelmente chegará à ponta da cadeira, aguardando o que vai acontecer. Julián é o que somos quando criamos diálogos e histórias que nos assombram em momentos de ansiedade e de tensão. Talvez elas jamais ocorram, mas a sua existência, em nossa mente, as fazem reais enquanto duram, e os seus resultados imaginários nos consomem como se fossem verdadeiros. Ao leitor, cabe a árdua tarefa de torcer com Julián para que a mãe da criança que ele ama, como se fosse sua própria filha, volte para casa, volte para os dois. O desespero de Julián se transforma em nosso, e o amor que ele sente pela criança nos invade da mesma forma.

No prefácio do livro, Zambra contempla o que o teórico Walter Benjamin afirma sobre a arte de contar histórias: ela é a arte de saber continuá-las. Zambra hipnotiza seu leitor ao continuar o que ele inicia e ao dar a oportunidade de o leitor também fazer isso assim que elas acabam. Com Zambra, andar de táxi, sem rumo, após uma notícia de morte e ajeitar a jaqueta de uma criança enquanto chove deixam de ser atos comuns e passam a ser nossos companheiros assim que fechamos o livro. Suas duas novelas nos acompanham por um bom tempo, e isso se deve ao poder de sua narrativa, ao poder dos títulos que elas carregam e, acima de tudo, ao do questionamento que ele faz em cada linha: “afinal, o que é viver?”

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Quando Ray Bradbury nos presenteou com seu atualíssimo Faherenheit 451, o mundo havia presenciado a queima de livros por oficiais nazistas e por parte da população. Em tempos de guerra, o conhecimento se torna uma arma, e Bradbury, sabendo disso, não se negou a mencionar esse fato em uma das mais emblemáticas frases de sua obra: “Um livro é uma arma carregada na casa vizinha. [...] Quem sabe quem poderia ser alvo de um homem lido?” O homem lido é justamente o que falta à sociedade distópica do universo de Faherenheit 451. O título da obra é a exata temperatura da queima do papel, mas engana-se aquele que acha que queimar livros é apenas atear fogo neles. Bradbury deixa claro o efeito catastrófico de uma sociedade sem conhecimento, sem reflexões e sem literatura.

Guy Montag, o bombeiro que não apaga fogos, mas que os inicia, descobre que aqueles objetos que ele tem que incendiar são poderosos. Sua descoberta não é imediata e, assim como toda caminhada, inicia com passos tímidos e duvidosos. Quando sua esposa tenta o suicídio, ele estranha o fato de não ser um médico a atendê-la. Os enfermeiros que a salvam explicam que tantas pessoas tomam as pílulas que ela tomou, que não há mais médicos disponíveis para todos. O susto permite que ele preste mais atenção àquilo que acontece ao seu redor, e suas reflexões são alimentadas por Clarisse, uma menina que tira todas as suas certezas e as substitui por dúvidas. As dúvidas vão se transformando em novas certezas e são laureadas pelo suicídio de uma mulher que se recusa a ter seus livros assassinados pelos bombeiros. Dolorosamente, ela coloca fogo em seu corpo e nos livros, para que eles possam morrer juntos.

Se uma mulher é capaz de morrer por eles, o que eles escondem afinal? O novo questionamento de Montag é seguido pelo roubo de uma Bíblia na casa da mulher, e seu primeiro ato rebelde apenas antecede os vários outros roubos que viriam a acontecer. Ironicamente, cada roubo é uma parte da restauração da consciência de Montag, que não consegue mais conviver com a mulher, depois das perguntas de Clarisse, e percebe quão fútil ela pode ser. Os livros o contaminaram com um novo olhar, uma nova forma de entender a realidade, e ele não poderia voltar ao que era. Para se entender melhor e entender como palavras tinham tanto poder, Montag procura ajuda e encontra mais do que isso: ele se encontra ao encontrar pessoas como ele.

A obra de Bradbury traz alguns momentos que pareciam ser tão distantes de nós e que, infelizmente, se mostram tão atuais. Quando Beatty, o chefe de Montag, explica que as minorias iniciaram o movimento de destruição de livros, percebemos quão fortes os pequenos passos são. Qualquer caminhada começa neles e por eles – seja ela para o Bem ou para o Mal. Ao ler um poema e deixar a amiga de Mildred, sua esposa, incomodada indica, mais uma vez, o poder das palavras – novamente, para o Bem ou para o Mal. Faherenheit 451 é mais que um livro. Ele é um tributo a todos os autores que foram gentis o suficiente para nos ceder seu tempo e permitir que refletíssemos sobre uma ou outra questão. Ele também é um tributo a todos os leitores que se recusam, como Bradbury se recusou, a ser um “não livro”. Afinal, se todos temos histórias e a perfeita capacidade de refletir, somos todos livros. Não podemos nos esquecer disso e do que Bradbury tão acertadamente coloca na parte intitulada CODA da versão impressa de Faherenheit 451: “Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos.” Que tenhamos a capacidade de apagar o fósforo enquanto ele ainda não se transformou em incêndio e que, acima de tudo, não neguemos o nosso direito ao conhecimento e à literatura. Que Faherenheit 451 nunca seja Brasil 2020 ou qualquer outro lugar em qualquer outro ano..

sábado, 1 de agosto de 2020


“Formas de voltar para casa” é o mais novo romance do aclamado escritor chileno Alejandro Zambra, lançado pelo selo Tusquets, da editora Planeta de Livros do Brasil. A obra já foi agraciada com duas premiações literárias: o Prêmio Altazor e o Prêmio do Conselho Nacional do Livro como melhor romance de 2012 no Chile. Em “Formas de Voltar para casa”, com uma narrativa envolvente, Zambra trata de um tema pesado: a ditadura de Pinochet no Chile e os reflexos desse período na vida de diversas famílias e de famílias diversas. De forma fantástica, o autor mostra, na obra, as muitas vezes em que o narrador precisou voltar para casa: ao fim de um terremoto ou às várias voltas à casa dos pais.

A história vai misturando memórias da infância do narrador, que vão retornando juntamente com seu reencontro com a personagem Claudia, com os fatos presentes de sua vida e assim, o narrador vai escrevendo um romance, ao mesmo tempo em que reconstrói, em sua mente, a verdadeira história dos tempos de chumbo no Chile. Em determinado momento, o narrador diz que era “filho de uma família sem mortos”, enquanto vários de seus amigos, incluindo Cláudia, tiveram a vida deles e de suas famílias devastadas pela crueldade da ditadura de Pinochet. O narrador, ao reconstruir suas memórias, se dá conta de que só tem uma família sem mortos porque seus pais eram de direita e, no fundo, idolatravam Pinochet.

Ao ligar os fatos históricos à vida pessoal das personagens, Zambra deixa o leitor arrepiado em alguns trechos da obra, como, por exemplo, quando Cláudia conta que sua família a levou para ver o Chespirito (Roberto Bolaños) no Estádio Nacional, em 1977,  num ato de amor à filha, já que sabiam que o Estádio Nacional era usado como local de tortura naqueles tempos sombrios, onde muitos de seus companheiros foram maltratados pelo sombrio regime. O livro é também uma linda viagem pela capital do Chile, Santiago, passando pela Paseo Humanada, o coração da cidade e por dose frias de Pisco Sour.

Um detalhe que chama a atenção na obra são os ciclos em que ela se encerra: a narrativa inicia e termina com a ocorrência de terremotos, que realmente aconteceram no Chile, nos anos de 1985 e 2010 e, com a genialidade que pertence somente aos grandes escritores, a narrativa também começa e termina com governos menos humanitários, havendo aí uma grande metáfora, que talvez passe despercebida para alguns leitores, entre os terremotos naturais e as duras formas de governo.

A difícil relação entre pais e filhos, que perpassa a obra, leva o narrador a dizer, no final, que “às vezes precisamos nos vestir com as roupas dos pais e nos olhar demoradamente no espelho”, levando o leitor a uma reflexão profunda sobre suas próprias relações familiares e sobre a familiaridade dessas relações com a política e os direitos humanos. Não é à toa que Zambra é considerado um dos mais relevantes autores da literatura latino-americana contemporânea, e “Formas de voltar para casa” deixa isso ainda mais claro.