segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Quando Ray Bradbury nos presenteou com seu atualíssimo Faherenheit 451, o mundo havia presenciado a queima de livros por oficiais nazistas e por parte da população. Em tempos de guerra, o conhecimento se torna uma arma, e Bradbury, sabendo disso, não se negou a mencionar esse fato em uma das mais emblemáticas frases de sua obra: “Um livro é uma arma carregada na casa vizinha. [...] Quem sabe quem poderia ser alvo de um homem lido?” O homem lido é justamente o que falta à sociedade distópica do universo de Faherenheit 451. O título da obra é a exata temperatura da queima do papel, mas engana-se aquele que acha que queimar livros é apenas atear fogo neles. Bradbury deixa claro o efeito catastrófico de uma sociedade sem conhecimento, sem reflexões e sem literatura.

Guy Montag, o bombeiro que não apaga fogos, mas que os inicia, descobre que aqueles objetos que ele tem que incendiar são poderosos. Sua descoberta não é imediata e, assim como toda caminhada, inicia com passos tímidos e duvidosos. Quando sua esposa tenta o suicídio, ele estranha o fato de não ser um médico a atendê-la. Os enfermeiros que a salvam explicam que tantas pessoas tomam as pílulas que ela tomou, que não há mais médicos disponíveis para todos. O susto permite que ele preste mais atenção àquilo que acontece ao seu redor, e suas reflexões são alimentadas por Clarisse, uma menina que tira todas as suas certezas e as substitui por dúvidas. As dúvidas vão se transformando em novas certezas e são laureadas pelo suicídio de uma mulher que se recusa a ter seus livros assassinados pelos bombeiros. Dolorosamente, ela coloca fogo em seu corpo e nos livros, para que eles possam morrer juntos.

Se uma mulher é capaz de morrer por eles, o que eles escondem afinal? O novo questionamento de Montag é seguido pelo roubo de uma Bíblia na casa da mulher, e seu primeiro ato rebelde apenas antecede os vários outros roubos que viriam a acontecer. Ironicamente, cada roubo é uma parte da restauração da consciência de Montag, que não consegue mais conviver com a mulher, depois das perguntas de Clarisse, e percebe quão fútil ela pode ser. Os livros o contaminaram com um novo olhar, uma nova forma de entender a realidade, e ele não poderia voltar ao que era. Para se entender melhor e entender como palavras tinham tanto poder, Montag procura ajuda e encontra mais do que isso: ele se encontra ao encontrar pessoas como ele.

A obra de Bradbury traz alguns momentos que pareciam ser tão distantes de nós e que, infelizmente, se mostram tão atuais. Quando Beatty, o chefe de Montag, explica que as minorias iniciaram o movimento de destruição de livros, percebemos quão fortes os pequenos passos são. Qualquer caminhada começa neles e por eles – seja ela para o Bem ou para o Mal. Ao ler um poema e deixar a amiga de Mildred, sua esposa, incomodada indica, mais uma vez, o poder das palavras – novamente, para o Bem ou para o Mal. Faherenheit 451 é mais que um livro. Ele é um tributo a todos os autores que foram gentis o suficiente para nos ceder seu tempo e permitir que refletíssemos sobre uma ou outra questão. Ele também é um tributo a todos os leitores que se recusam, como Bradbury se recusou, a ser um “não livro”. Afinal, se todos temos histórias e a perfeita capacidade de refletir, somos todos livros. Não podemos nos esquecer disso e do que Bradbury tão acertadamente coloca na parte intitulada CODA da versão impressa de Faherenheit 451: “Existe mais de uma maneira de queimar um livro. E o mundo está cheio de pessoas carregando fósforos.” Que tenhamos a capacidade de apagar o fósforo enquanto ele ainda não se transformou em incêndio e que, acima de tudo, não neguemos o nosso direito ao conhecimento e à literatura. Que Faherenheit 451 nunca seja Brasil 2020 ou qualquer outro lugar em qualquer outro ano..

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