quarta-feira, 8 de abril de 2020

História da Violência

O efeito do preconceito, da vergonha e da mentira permeiam a obra ficcional, mas de experiência pessoal, de Édouard Louis. História da Violência é o retrato de como uma sociedade pode modificar ou sufocar alguém. Transitando entre o passado e o presente, Édouard permite que o leitor saiba o que realmente aconteceu naquela noite de Natal apenas quase no fim do livro. O autor convida o leitor a dar um passeio em sua mente, para que toda a sua angústia e sua confusão sejam sentidas. Junto com ele, o leitor viaja pelas fases da vida do autor e percebe como ele enxerga o mundo e como aquele episódio o afetou de diversas maneiras.

Na madrugada de um solitário 25 de dezembro, Édouard conhece Rema e o leva ao seu apartamento. O que Édouard pensa ser apenas um encontro que, no futuro, talvez pudesse se transformar em algo mais sério, torna-se seu pior pesadelo: Rema quase o mata enforcado e o estupra violentamente, a ponto de ele ter sangue escorrendo pelas pernas e manchando sua calça no hospital. No entanto, o crime hediondo não é o único pesadelo que Édouard já teve em sua vida real. Tudo se inicia com o fato de ele se sentir diferente em todas as fases de sua vida. Ao perceber que ele era diferente, sua autopercepção adolescente foi se construindo de maneira negativa, fazendo com que ele se sentisse claustrofóbico em seu corpo e em sua mente. O vilarejo onde morava equivalia a uma prisão, e o julgamento das pessoas do vilarejo o incineravam constantemente.

Quando Édouard finalmente consegue se mudar para a cidade grande, ele demora para se adaptar. A liberdade de poder ser quem ele é vem com extravagâncias, que ele enxergava como necessárias antes de conhecer dois homens que se tornam seus melhores amigos e confidentes. A amizade dos três permite que Édouard consiga entender sua homossexualidade como algo natural, que não precisa de artifícios para ser escondida ou de excentricidade fabricada.

Durante toda a obra, Édouard fala sobre como a mentira acontece em pequenos gestos e nas falas daqueles que você ama e que deveriam amar você incondicionalmente. A mentira não o assusta e define sua visão de mundo. Esconder a verdade, para ele, é apenas um ato de sobrevivência e, dele, vem parte da sua destruição naquela noite de Natal. Se ele não enxergasse a mentira como algo tão banal, talvez ele tivesse percebido que seu encontro com Rema não terminaria bem. Talvez ele tivesse fugido. Talvez, apenas talvez, ele tivesse entendido que um cachecol em volta do seu pescoço não significasse uma brincadeira após o roubo de seu celular.

Édouard conta com a fluidez de uma criança tudo que lhe vem à mente. Muitas vezes, o leitor se pergunta se o que ele está contando e verdade ou se são suas impressões, vistas pelos olhos contaminados de quem sempre viveu entre mentiras, preconceito e vergonha. Não há como saber e tampouco deveria interessar. O que ele quer dizer é que a mentira e o preconceito sempre estarão presentes em nossas vidas. Ele, que até aquele Natal, não se sentia preconceituoso, percebe que o preconceito também o atingiu: a etnia de Rema é uma das mais desprezadas na França, e Édouard, depois do estupro, passa a vê-la como algo ruim, transferindo a raiva que tem de um indivíduo a um povo todo.

Apesar de ser uma obra muito dolorosa, os amigos de Édouard dão a ela um tom de solidez e de promessa de um futuro melhor. No momento máximo de sua solidão, Édouard imagina que seus dois melhores amigos jamais seriam chamados para o seu enterro, pois eles não existem, aos olhos da família e de quem o conhece.  Isso lhe dói mais do que qualquer coisa. Ao fim da obra, quando o leitor percebe que os dois acolhem Édouard e que Édouard sabe que eles sempre encontrarão um jeito de estar com ele, um leve sopro de esperança invade o leitor e, ao abraçar sua solitude, Édouard também abraça o leitor e a dor de várias verdades.

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