segunda-feira, 21 de setembro de 2020

 

Valter Hugo Mãe, autor nacionalizado português, que completará 49 anos nesta sexta-feira, dia 25 de setembro, tem a escrita de um pássaro que conhece o mundo. Cada um de seus romances tem como pano de fundo um país diferente e um tipo de amor que não se prende apenas ao mundo que conhecemos como ele é. Seus romances nos tocam e se deixam ficar, como cicatrizes em nossas almas, depois de sua leitura. Dos vários que ele já escreveu, “A desumanização” deixa uma marca que levamos para sempre conosco.

Tão dolorosa quanto triste é a história de Halla, criança-mulher de 12 anos, que perde a irmã gêmea, Sigridur, que morreu e foi plantada “para nascer árvore”. Passando a ser invisível para a mãe e para a aldeia finlandesa onde mora, Halla sofre a dor do luto sozinha, apenas com os poemas que o pai escreve para ela e as lembranças da irmã. O que poderia ser uma vida vivida a quatro mãos, duas almas e duas risadas passa a ser meia vida, com andanças por campos e pensamentos no que poderia ter sido, carregando o fardo da culpa de ser a irmã sobrevivente.  

Ao longo da história, enxergamos a aldeia e seus moradores com os olhos de Halla-Sigridur. Halla ainda não consegue ser apenas ela já que, durante toda a sua curta existência, ela era Sigridur e Sigridur era ela. Como gêmeas, uma não existia sem outra, e Halla, repentinamente, deve aprender a existir apesar de suas dores e de sua falta de vontade. Halla, de ser completo que era, passa, então, a se procurar na sua incompletude, encontrando razões para viver onde Sigridur não as via. Essa é a maneira que Halla encontra para existir: abandonando o que ela e a irmã pensavam e faziam juntas. Já que uma se foi, a vida passa a ser o que o passado não era, e Halla encontra formas de se punir para poder sobreviver ao luto e ao crime de não ter partido no lugar da irmã, como a mãe lhe diz que deveria ter acontecido.

Para que Halla deixe de ser invisível a ela mesma, ela tem que deixar de ser a irmã de Sigridur e, como única forma de passar a existir, ela decide permitir que a pessoa que a irmã mais abominava se aproxime dela. Einar, um homem bem mais velho que Halla e com um sutil atraso mental, objeto de risos jocosos e comentários maldosos das irmãs, torna-se aliado da irmã que ainda vive e, juntos, eles lidam com suas próprias dores. Duas almas solitárias e culpadas encontram o alívio uma na outra, de maneira espiritual e carnal.

A história de Halla choca o leitor mais atento, que acompanha o desejo que a pequena mulher de 12 anos tem de sair do estado de não existência enquanto ela deve continuar existindo apesar dela mesma. Mesmo que as paisagens da Finlândia amenizem a dor das personagens e que as palavras de Valter Hugo Mãe, carregadas de poesia, ofereçam ao leitor uma profunda reflexão sobre o medo que mora em todos nós, Halla e sua consternação nos perseguem como nossa própria sombra quando queremos nos livrar dela. A união dos sexos de Halla e Einar, poeticamente, apunhala o leitor e não o deixa procurar por socorro.

Ao descobrir que a nossa humanidade não começa em nós, mas naquele que nos rodeiam, Halla tem que conviver com o peso de não ser e de não ter Sigridur, sua metade. Halla tem que conviver com olhares acusadores e hostis. Ao tentar dividir com o leitor a sua dor, ela nos ensina o que as palavras são as responsáveis por nossas lembranças e por nossas escolhas e que um mundo sem elas não é um lugar para se existir. Halla procura por esse mundo sem palavras e sem lembranças e sem dor, mas tudo que ela encontra é o silêncio gritando de volta para ela, relembrando-a que não há mais volta. Ela tem que ser o que restou dela e que se reerguer de seus farrapos de alma, pois “a solidão é uma ficção de nossas cabeças” e “a beleza é sempre alguém, no sentido em que ela se concretiza apenas pela expectativa da reunião com o outro”. Halla, assim como nós, não tem escolha. Não podemos nos deixar sós e nem em silêncio. Ele grita e não nos permite esquecer o que somos – seja lá o que isso significa.

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