“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Na epígrafe de sua mais famosa e atual obra, José Saramago já determina o tom da narrativa que o leitor irá encontrar: está em suas mãos a escolha entre o ver e o não ver, entre o agir e o não agir – sabendo que, muitas vezes, agir significa não fazer coisa alguma, por não ser o momento certo. “Ensaio sobre a cegueira” é um livro que choca aquele que tem a coragem de abri-lo e de desfrutá-lo, ao mesmo tempo em que o marca e que o toca por toda a vida. “Ensaio sobre a cegueira” extrapola as barreiras da cegueira do corpo e atinge a cegueira da alma de uma maneira mais próxima a nós do que desejaríamos.
Com o mundo tendo sido acometido por uma cegueira branca e contagiosa, Saramago nos presenteia com a mulher do médico, que é a única personagem que não foi atingida pela epidemia. A ela, portanto, cabe o peso de enxergar o que ninguém mais vê, de guiar quando todos estão perdidos, de tomar decisões quando ninguém mais pode e de entender quando ninguém mais sequer tenta. A cegueira incomum também retira de dentro de todos aquilo que lhes recheia, que preenche seu coração e que comanda seus passos. Enquanto alguns mostram que são feitos de amor, de gentileza, de bondade e de sonhos, outros não percebem que são feitos de piche ou de lama ou de pedra. A cegueira do livro, assim como uma pandemia na vida real, vem provar que o ser humano precisa de testes para saber quem ele realmente é.
O fato de nenhuma personagem ter nome e de poder ser identificada apenas por uma caraterística não permanente (mulher do médico, rapariga dos óculos escuros, velho da venda preta) reitera a ideia de que somos iguais, sem qualquer hierarquia na escala humana, e que nosso corpo é uma mera carcaça que abriga nosso mais profundo sentimento. A mulher do médico, íntegra e altruísta, olha para dentro dela e para dentro daqueles que ela guia – tanto fisicamente, quanto emocionalmente – e demonstra que há pessoas que vêm à Terra com uma missão amarga, porém necessária. É ela que transforma sua solidão em ação, seu medo em esperança, sua fome de viver em alimento para quem ela acolhe.
O fato de nenhuma personagem ter nome e de poder ser identificada apenas por uma caraterística não permanente (mulher do médico, rapariga dos óculos escuros, velho da venda preta) reitera a ideia de que somos iguais, sem qualquer hierarquia na escala humana, e que nosso corpo é uma mera carcaça que abriga nosso mais profundo sentimento. A mulher do médico, íntegra e altruísta, olha para dentro dela e para dentro daqueles que ela guia – tanto fisicamente, quanto emocionalmente – e demonstra que há pessoas que vêm à Terra com uma missão amarga, porém necessária. É ela que transforma sua solidão em ação, seu medo em esperança, sua fome de viver em alimento para quem ela acolhe.
Em meio ao caos de uma cidade não identificada, com pessoas nuas e sujas de corpo e de alma, banhada com desespero, escuridão e abandono, com corpos espalhados e comidos por animais que também precisam se alimentar, nossas personagens vão deixando um pequeno rastro de luz por onde passam. Elas não abandonam uma a outra; elas dão as mãos para se guiarem; elas sabem que o coletivo é mais importante que o individual. Elas não precisam de uma igreja para demonstrar sua fé ou sua ética: elas as exercem sempre que podem, sem que sejam vigiadas, sem que façam por medo do depois. O que importa é o agora, pois o agora é tudo que elas têm.
A lealdade, a escolha pelo certo em uma situação sombria, o acolhimento e a ajuda aparecem em cada cena da obra em meio ao que o ser humano mostra de podridão. O velho da venda preta sabe que é um fardo, mas todos sabem que ajudá-lo é o correto. A ajuda não é negada. O rapazinho estrábico só precisa de uma de uma mãe, e ela vem de uma prostituta, que vende o corpo, mas não o instinto materno que a ilumina. O médico precisa de alguém que o socorra e que o fortaleça, e sua mulher o entende e o levanta. Nossas personagens mostram que uma taça com água é a celebração à vida e que uma chuva observada da janela é o renascimento. Nossas personagens são o nosso reflexo em algum momento de nossas vidas...
Ao ter aberto seu livro com a frase que inicia esse texto e ao ter feito com que o leitor refletisse sobre a hipocrisia que os cerca, é possível que Saramago tenha sorrido amargamente e pensado: “Se pudesses ver, tu escolherias enxergar? Se pudesses enxergar, tu repararias?”. Mesmo que isso não tenha acontecido, fica aqui a pergunta: será que reparamos apenas quando observamos o outro ou será que reparamos quando consertamos o que enxergamos de errado?
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